O desabafo de um professor negro vítima de ataques nazistas, por Sidney Rezende

Professor Josemar Figueiredo Araújo . Foto: Arquivo Pessoal

O professor universitário e advogado Josemar Figueiredo Araújo é um entre tantos intelectuais brasileiros comprometidos com o ofício de educar. Faz parte da sua rotina estar numa sala de aula presencial – ou virtual, principalmente em tempos de pandemia. Nem mesmo sua condição de cego o impede de buscar a rápida mobilidade para estar disponível para os estudantes que, assim como ele, são apaixonados pelo conhecimento.

Professor Josemar Figueiredo Araújo . Foto: Arquivo Pessoal

No dia 28 de maio, ele e os que acompanhavam sua palestra intitulada “Dilemas da Inclusão em tempos de isolamento social”, através do aplicativo Zoom com transmissão pelo Youtube, como parte das atividades acadêmicas da Universidade Veiga de Almeida, no Rio, instituição na qual trabalha, foram vítimas de uma ação criminosa.

Por duas vezes projeções de tela com símbolos nazistas foram exibidas e interromperam a tranquilidade da aula. As inscrições racistas foram projetadas na tela com direito a fundo musical adotada pelo movimento racista americano Ku Klux Klan. As ofensas foram dirigidas diretamente ao professor, e por duas vezes.

“Tenho evitado expor essa experiência de forma superdimensionada na imprensa e nas redes sociais, porque não acredito que isso seria produtivo em matéria de educação. Busco sua credibilidade jornalística apenas para que seja publicado um texto em que eu possa expor algumas coisas que não consegui dizer no dia da palestra”, esclarece.

Segue abaixo o desabafo:

Sou Professor do Curso de Direito da Universidade Veiga de Almeida. No dia 28 de maio de 2020, eu realizava uma atividade intitulada “#PalestraEmCasa” com o tema “Dilemas da inclusão frente ao isolamento social”, sendo esta atividade parte do calendário universitário de eventos.

Em função do atual quadro da educação, em que as aulas estão ‘virtualizadas’, aquele evento ocorreu através do aplicativo Zoom. Durante minha exposição, ocorreu uma invasão e várias ofensas racistas em inglês foram proferidas, conforme se pode verificar no vídeo. Traduzida uma das frases, é possível que se ouça: “Odeio gente negra”. Símbolos como a suástica  nazista foram exibidas para os participantes do aplicativo, porém não foram transmitidas para o Youtube, onde se ouvem os áudios.

A História só tem dois lados: o da reação e o da aceitação. Estou convicto de que meu lado é a educação.

Uma nova interrupção ocorreu minutos depois, quando novas ofensas racistas foram proferidas e outras representações nazistas foram projetadas na tela, sem que todas fossem captadas pela transmissão do Youtube, sendo possível ouvir o áudio, assim como ver a inscrição “negro sobre o slide”.

No momento em que vozes outrora envergonhadas de seu racismo passam a ter coragem de expressá-lo, é preciso ter lado, é preciso ter convicção. É neste momento em que simpatizantes de causas neonazistas assumem seus ideais, que mais precisamos da educação. O medo que podemos sentir dos covardes não nos torna parte de seu exército de racistas mas leva-nos a permitir que seu ódio grite mais alto. Em tempos assim, a História só tem dois lados: o da reação e o da aceitação. Estou convicto de que meu lado é a educação.

Não tenho medo de discurso nazista.

Foi por acreditar que é possível superar este momento sem dar voz a um ódio cada vez mais incontido, que decidi editar o vídeo da palestra e não deixar disponível os trechos das ofensas. Não tenho medo de discurso nazista nem de discurso racista, tenho responsabilidade com o ensino e não acredito que seja útil a ninguém a disponibilização da íntegra do vídeo. Sei que a internet permite a perpetuação de fatos como esses mas não serei eu a colaborar para isso.

Em uma escalada do discurso da supremacia racial, defensores da supremacia branca são salvos nos hospitais com sangue negro, se alimentam do trabalho dos negros e agridem negros porque não conseguem enxergar sua incapacidade de entender a própria dependência humana: institucionalizam a burrice com traços de uma imbecilidade letrada, que não pode ser confundida com educação. Racistas, neonazistas, neofascistas… podem ser muito bem formados, possuir títulos e diplomas mas não sabem nada de educação.

Defensores da supremacia branca são salvos nos hospitais com sangue negro.

Recordo-me aqui do inesquecível Professor Darcy Ribeiro. Ele nos deixou um ensinamento: o lado certo da história, muitas vezes é o lado derrotado. Disse certa vez o Professor: “Fracassei em tudo o que tentei na vida. Tentei alfabetizar as crianças brasileiras, não consegui. Tentei salvar os índios, não consegui. Tentei fazer uma universidade séria e fracassei. Tentei fazer o Brasil desenvolver-se autonomamente e fracassei. Mas os fracassos são minhas vitórias. Eu detestaria estar no lugar de quem me venceu”.

Os gritos racistas, os símbolos neonazistas, os discursos neofascistas podem até convencer pela obviedade mais tosca, mais quadrada e mais desonesta, incapaz de resistir à força de uma racionalidade que agora se tenta calar. Voltamos à época do culto a personalidades que só representam a si, ao seu próprio ego, aos seus próprios interesses e à sua própria imagem. É característico da mentalidade tacanha o culto à personalidade. Digna de comiseração a crença de que uma única pessoa tem a solução para os problemas do mundo ou que a solução dos problemas de certa sociedade está em critérios raciais.

Se essas mentes tacanhas ganharam tanta voz, nos cabe a autocrítica como educadores: elas têm méritos ou nós estamos errando? A questão requer de nós uma resposta refletida, mas ela não pode ser o silêncio. Diante do revisionismo histórico, do negacionismo científico e do autoritarismo discursivo em que se usa a tecnologia para destruir reputações, destilar ataques racistas e promover a mentira como arma política, nosso erro é e será o silêncio.

Esse silêncio institucional que preocupa não pode contaminar a quem acredita na educação. Dizem que as instituições estão funcionando, ainda que o raciocínio lógico nos diga que elas estão agonizando, enfraquecidas dia a dia pela simbologia do respeito ao voto popular, como se voto popular garantisse a alguém o direito de tentar fazer da diversidade humana um único rebanho programado para só dizer amém.

Se hoje a liberdade flerta com o autoritarismo, se hoje a civilidade flerta com a violência, se hoje o revisionismo histórico dá forças ao racismo, ao neonazismo e ao neofascismo, há culpados que continuam fazendo barulho. Os Inocentes não podem continuar fazendo silêncio diante desses gritos comandados e programados por uma obediência cega.

Volto ao Professor Darcy Ribeiro: “Nossos instrumentos são a voz, a palavra e o conhecimento científico, e eu pretendo usá-los à exaustão. Se eu tiver que ficar do lado derrotado da história, este será meu triunfo”.

Como cidadão, fiz o que me cabia, comuniquei o fato à 6ª Delegacia de Polícia. Como professor de Direitos Humanos, não posso e não vou me calar porque são esses meus temas de trabalho. A Universidade, os estudantes e todas as pessoas que viveram aquele momento comigo são tão alvos daquelas ofensas quanto eu, os únicos responsáveis são os agressores e isso precisa ficar claro. Por isso, Minha disposição está multiplicada para continuar tentando fazer com que a diversidade humana seja pauta inegociável da educação. 

A primeira invasão virtual começa no tempo de exibição de vídeo aos 20:53, com várias ofensas em áudio, e para alguns usuários, com exibição de conteúdo Nazista – Isto tem duração no tempo de 20’53” até 22’47” de exibição do vídeo – Em um total de 2’06” minutos. No tempo de exibição do vídeo de 31’33, retoma-se a palestra que dura até o tempo de exibição de 48’54” onde ocorre uma nova invasão onde se vê escrito a palavra “NEGRO” na cor vermelha na apresentação, em tela, até a exibição das imagens que seguem até o tempo de 49’00.

Em nota enviada ao SRzd nesta segunda-feira (8), a Universidade Veiga de Almeida (UVA) se posicionou sobre o ocorrido dizendo que repudia os ataques sofridos pelo professor e que está prestando solidariedade ao docente, além de acompanhar os fatos para que providências legais sejam tomadas. Clique aqui para ler.












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