Artigo: O Brasil do século 21 – A aliança preferencial com os EUA e o acordo de livre comércio com a UE

Jair Bolsonaro e Donald Trump. Foto: Isac Nóbrega/PR

Jair Bolsonaro e Donald Trump. Foto: Isac Nóbrega/PR

Em Agosto de 2019, o Brasil acaba de obter o status de “aliado preferencial não-membro da OTAN” dos Estados Unidos. Pouco antes do anúncio da parceria feito por Donald Trump, o MERCOSUL fechou um acordo de livre comércio com a União Europeia, negociação que se iniciou em 1995. Esses são, até o momento, as duas grandes realizações da política externa de Jair Bolsonaro.

Como o SRzd adiantou em primeira mão em Março, a visita presidencial de Bolsonaro aos Estados Unidos visava a obtenção do status de aliado preferencial. Ao mesmo tempo, o recém-empossado presidente visava ampliar suas opções no campo comercial – uma promessa de campanha.

O Brasil abriu o século 21 como um dos países emergentes mais promissores.

Analisadas em conjunto, os acordos com Estados Unidos e União Europeia representam uma forte guinada no plano externo – que, ao longo do século, viu o Brasil em busca de opções emergentes.

O Brasil abriu o século 21 como um dos países emergentes mais promissores. Após a estabilização da economia em meados da década de 90 com o Plano Real, o país governado por Fernando Henrique Cardoso viveu, por meia década, uma combinação virtuosa: crescimento econômico acima da média mundial com inclusão social vigorosa. O Brasil se tornou um dos maiores destinos de investimento externo direto e viveu picos de produtividade nos setores da sua economia. Uma crise globalizada no fim do século desacelerou o crescimento, mas o padrão foi retomado no começo de uma nova década, já no governo de Luiz Inácio Lula da Silva.

Uma década de subida global dos preços das commodities acelerou o crescimento dos emergentes. A União Europeia lidava com os custos da ampliação comunitária após a introdução do Euro e o Tratado de Nice. Os Estados Unidos de George W. Bush experimentavam uma recessão junto com guerras simultâneas no Oriente Médio (Iraque) e Ásia Menor (Afeganistão). Foi nesse contexto que a Goldman Sachs incluiu o Brasil nas principais economias do futuro (junto a China, Rússia e Índia).

Nos primeiros 10 anos do novo século o Brasil reduziu significativamente a desigualdade social, além de quebrar recordes tanto em sua balança de investimentos quanto na balança comercial.

Nos primeiros 10 anos do novo século o Brasil reduziu significativamente a desigualdade social, além de quebrar recordes tanto em sua balança de investimentos quanto na balança comercial. Na esteira da prosperidade desconhecida vieram manifestações de poder suave. O país buscou um novo status no plano internacional, condizente com suas transformações. No plano regional, isso se traduziu numa busca por liderança (em contraste com o declínio argentino, em contrapartida à ascensão venezuelana sob Hugo Chávez). Em chave global, o Brasil intensificou investimentos diplomáticos na África e Oriente Médio, cujas contribuições para o intercâmbio comercial brasileiro cresciam.

Quando o planeta foi sacudido pela crise econômica mais grave desde a Grande Depressão, o Brasil tinha como principal parceiro comercial e investidor um colega emergente, a China – cuja economia rapidamente crescera nas décadas globalizadas. A ascensão chinesa deslocou simultaneamente os EUA e a UE dos papéis de maiores parceiros do Brasil. A China também se beneficiou do crescente enfraquecimento do MERCOSUL após a debacle da economia argentina em 2001.

De volta aos braços de parceiros tradicionais, o país governado por Jair Bolsonaro retoma definições de outras eras na política exterior.

10 anos após a crise de 2008, o Brasil acaba de se tornar aliado preferencial dos Estados Unidos governados por Donald Trump – objetivo central da visita presidencial de Bolsonaro em Março. Revivido como bloco comercial, o MERCOSUL acaba de fechar um acordo de livre comércio com a União Europeia. De volta aos braços de parceiros tradicionais, o país governado por Jair Bolsonaro retoma definições de outras eras na política exterior. Em busca de reputação como parte do “Ocidente”, o Brasil se afasta da órbita chinesa e dos demais emergentes.

Essa guinada notável tem componentes tanto domésticos quanto internacionais. A crise de 2008 foi especialmente dura com os países emergentes. O fim da euforia das commodities foi seguido por súbita retração do investimento externo (em busca de minimizar riscos) e renovado protecionismo. Um fator adicional amplificou as dificuldades emergentes: o preço do petróleo despencou após uma década de recordes, o que impactou especialmente economias do Oriente Médio e norte da África.

Em 2009 o Brasil viveu o primeiro ano de crescimento negativo após o Real. Outros anos “perdidos” viriam entre 2014 e 2018 – uma sequência recessiva que não foi vivida desde a Grande Depressão. O estancamento da inclusão social (viabilizada pelo excedente de crescimento econômico) foi o pano de fundo da crise política que levou ao impeachment presidencial de Dilma Rousseff em 2016.

Como resultado dessas transformações nas fronteiras entre os âmbitos nacional e global, o Brasil de 2019 é, ao mesmo tempo, mais parecido com o de períodos anteriores à Constituição de 1988 mas também indissociável da crise de 2008 e seus efeitos contemporâneos nos países emergentes.

Entre os fatores domésticos podemos elencar a estagnação da produtividade nacional (combinada com uma longa desindustrialização, que se acelerou durante o boom das commodities). A crescente ociosidade da indústria deslocou o eixo do crescimento rumo ao agronegócio, impactando relações regionais. Ao mesmo tempo, nova geração de brasileiros com crescente qualificação universitária e grande conexão com um mundo globalizado que seus pais pouco conheceram buscava lugar ao sol. Na esteira de 2008 o planeta foi sacudido por manifestações que questionaram a política tradicional. Inicialmente elencados entre as “novas classes médias” do Brasil emergente, os jovens externaram sua contestação num crescente que culminou nas jornadas de Junho de 2013. Nesse momento, a economia iniciava movimento rumo à recessão. O ciclo virtuoso das eras FHC e Lula chegava ao fim.

O desgaste do sistema político formal evidenciado pelas Jornadas foi ampliado com o protagonismo do Judiciário – iniciado com o julgamento do Mensalão, consolidado com o impeachment de Dilma, culminando na Operação Lava Jato. Logo a seguir, outra elite política da República voltava à cena. Os militares pleitearam lugar de destaque, primeiro na burocracia estatal, em seguida nas urnas.

Como resultado dessas transformações nas fronteiras entre os âmbitos nacional e global, o Brasil de 2019 é, ao mesmo tempo, mais parecido com o de períodos anteriores à Constituição de 1988 mas também indissociável da crise de 2008 e seus efeitos contemporâneos nos países emergentes.

Jair Bolsonaro e Donald Trump. Foto: Alan Santos/PR
Jair Bolsonaro e Donald Trump. Foto: Alan Santos/PR

A política externa de Bolsonaro foi prenunciada no programa de governo do seu partido PSL – que apontava como parceiros preferenciais países como Estados Unidos, Itália e Israel. Três elementos chamam a atenção para o conteúdo das parcerias almejadas. Em primeiro lugar, as áreas temáticas enfatizadas. A ênfase ora recai sobre o comércio (numa perspectiva liberal), ora sobre questões estratégicas (mais próximas de uma abordagem realista tradicional). O Brasil de Bolsonaro busca acordos de livre comércio com países membros da OCDE. Sua leitura das instituições regionais é informada por uma visão mercantil. Inicialmente desprezado pela equipe ministerial, o MERCOSUL foi “reabilitado” via ênfase comercial (após suspender a Venezuela de Nicolás Maduro). Essa postura foi decisiva para lograr o entendimento com a UE, após duas décadas de negociações.

Para tal, colaborou a busca dos europeus por parceiros confiáveis, num mundo em que as maiores economias (EUA e China) estão em choque no plano comercial. Recentemente, a UE fechou um acordo de livre comércio com o Japão, criando um mercado de 700 milhões de pessoas. O aporte do MERCOSUL (ênfase na área agrícola) amplia opções disponíveis para a Europa, bem como abre oportunidades de exportar bens industriais e serviços, duramente impactados pela concorrência chinesa em outras regiões. O enfraquecimento político do MERCOSUL (visível na crise venezuelana e também na crise em curso no Paraguai) e a desindustrialização prolongada no Cone Sul trouxeram à tona interesses coincidentes entre as principais lideranças europeias e o agronegócio mercosulino.

A ênfase liberal dessa parte da política externa de Bolsonaro encontra correspondência, no plano doméstico, no programa de privatizações em curso e em tentativas de reduzir o dispêndio público.

O Brasil de 2019 se torna uma peça importante no xadrez da economia global. Por um lado cobiçado pela Europa, por outro lado cortejado pelos EUA paulatinamente contestados, com poucos aliados. O padrão de negociações de Trump (busca de ganhos relativos em disputas comerciais e redução dos investimentos em bens globais) enfraqueceu o multilateralismo, jogou incerteza sobre a ordem. Se aproximar do Brasil satisfaz a busca de Trump por alianças estratégico-comerciais nas Américas (que já incluem a limitação do NAFTA e a entrada da Colômbia na OTAN). A retomada da parceria comercial em novos termos é uma resposta à ascensão chinesa. A aliança estratégica (ensaiada no breve governo Michel Temer) consolida um eixo continental em oposição à Venezuela de Maduro.

Pelo lado brasileiro, o status de aliado preferencial constitui velho pleito de sua diplomacia, desde os tempos de Rio Branco. Além da pronunciada influência cultural dos EUA, a indústria brasileira aguarda um aporte de investimentos que os investidores domésticos e o governo, no momento, não se veem em condições de prover. A ênfase liberal dessa parte da política externa de Bolsonaro encontra correspondência, no plano doméstico, no programa de privatizações em curso e em tentativas de reduzir o dispêndio público.

Um segundo elemento é a presença de lideranças populistas que se identificam com a direita. Trump, Bolsonaro, Benjamin Netanyahu, Matteo Salvini exemplificam uma tendência da política global pós-2008. Uma combinação de personalidades midiáticas, retórica de força, nostalgia pré-crise e desapreço por mediações institucionais – coquetel explosivo, com efeitos desconhecidos.

Por fim, o afastamento do Brasil dos emergentes é sinal particular de fenômeno amplo. A propalada chegada dos emergentes ao topo da economia global seria, de acordo com expectativas criadas antes de 2008, fator decisivo para a transformação da própria ordem internacional (incluídas as instituições internacionais). Após uma década, o ritmo de transformação da ordem merece revisão. Mesmo sob intensa competição e contestação, EUA e Europa buscam manter suas respectivas estaturas. As instituições internacionais do pós-Segunda Guerra se mostraram, por um lado, mais resilientes do que seus criadores imaginaram. Por outro lado, a corrosão do populismo se junta aos efeitos da crise de 2008 como fatores que diminuem a eficiência e representatividade das mesmas.

O populismo de Bolsonaro o afasta das lideranças da UE. O apoio a políticas de Trump (como o rechaço a regimes internacionais de proteção ao meio ambiente) dificulta implementar o acordo de livre comércio.

Frustrado o intento de lograr um novo patamar no sistema internacional, o Brasil de 2019 se tornou um alvo em uma intensa disputa. A ascensão da China prossegue. A reação dos Estados Unidos de Trump se acentua. A tentativa da União Europeia operar como via média normativa se intensifica.

Há grande dificuldade para encontrar pontos de equilíbrio em meio a essas dinâmicas. O populismo de Bolsonaro o afasta das lideranças da UE. O apoio a políticas de Trump (como o rechaço a regimes internacionais de proteção ao meio ambiente) dificulta implementar o acordo de livre comércio. A Venezuela é outra questão que separa o Brasil dos europeus. A aliança com os EUA diminui margens de ação do Brasil na OMC e outros foros internacionais. O aporte de investimentos chineses é decisivo para impedir que a economia brasileira retome padrões recessivos. A alternância de posturas liberais e realistas no plano externo confunde interlocutores e multiplica inseguranças.

Não é surpreendente que a política externa de Bolsonaro seja marcada pela oscilação. O status do Brasil num mundo em transformação permanece em suspenso – entre possibilidades insatisfeitas do passado recente e nostalgias do século 20, quando ainda era considerado o “país do futuro”.

*Carlos Frederico Pereira da Silva Gama é professor de Relações Internacionais, Universidade Federal do Tocantins (UFT). Professor Visitante, Al Akhawayn University in Ifrane (Marrocos).

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