Artigo: Rompem-se os anéis, por Carlos Frederico Pereira da Silva Gama

Sergio Moro. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

Sergio Moro. Foto: Marcelo Camargo/Agência Brasil

O depoimento do ex-ministro da Justiça Sérgio Moro à Polícia Federal em Curitiba, em 2 de maio de 2020, abriu um novo ato do processo de desgaste do presidente Jair Bolsonaro. Demandado pelo Supremo Tribunal Federal, o depoimento derivou de acusações que o ex-ministro fez ao Planalto no ato de sua saída e pode culminar num processo de impeachment.

A ruptura entre a estrela da Operação Lava Jato e o vencedor da eleição presidencial de 2018 se seguiu à chegada da epidemia global do Covid-19 (coronavírus) ao Brasil. Em 2020, o país atravessa a pior recessão desde o Crash de 1929 – cenário que colocou o Planalto em conflito aberto com os demais poderes da República, bem como autoridades estaduais e municipais.

Nesse ínterim, diversos grupos que apoiaram a ascensão de Bolsonaro refletem a viabilidade de um governo prematuramente marcado pela debacle econômica e turbulência política. A crise entre o presidente e o ex-ministro abriu fissuras na base de governo entre Judiciário e Forças Armadas. Outros grupos – tais como o evangelismo político e economistas liberais – se enfraqueceram nas respostas nacionais à epidemia. O confinamento compulsório fechou templos, impediu manifestações públicas da religião. O governo que pretendeu instaurar a austeridade nas contas públicas e restringir duramente os investimentos se viu emparedado pelo Congresso Nacional, por governadores e prefeitos. Acabou por ser responsável pelo maior pacote de auxílio econômico da história brasileira, pagando preço ainda desconhecido e incorrendo na ira do empresariado, de portas fechadas e perspectivas de lucro declinantes.

Simultaneamente ao depoimento de Moro, o Congresso votava (em caráter não-presencial) um pacote bilionário de auxílio a estados e municípios. A desaprovação à figura presidencial se avoluma e outros nomes são aventados, numa antecipação das discussões rumo a 2022.

Parte desses grupos já compunha o governo antes de 2018 – e pretendem lá permanecer. O evangelismo chegou ao Planalto no governo Lula. Além do vice-presidente José Alencar ser de partido ligado à Igreja Universal, o governo do PT alçou ao ministério nomes como o atual prefeito do Rio Marcelo Crivella. A ascensão do Judiciário coincidiu com o início do governo Dilma Rousseff, no esteio do processo do “Mensalão”. Ambos permaneceram fortalecidos no impeachment de Rousseff e integraram a base de Michel Temer – responsável pelo início de reformas econômicas liberais e pela intervenção militar na segurança do Rio de Janeiro.

Em 2020, o amálgama de grupos de interesses desiguais se esfacela, em prejuízo do Planalto.
Tarefas políticas fundamentais na Nova República – regime democrático que se seguiu à ditadura civil-militar de 1964 – foram inviabilizadas no esteio do coronavírus. A transição do poder das mãos militares para os civis após 1985 sofreu uma inflexão ao longo da última década – também marcada pela atrofia do crescimento econômico. A inclusão paulatina de novas elites à mesa do poder desaguou no fracionamento da base do governo Bolsonaro.

Um terceiro impeachment no curso de 28 anos seria sinal evidente de fraqueza estrutural.

Em Outubro de 2018, apontei que os dois aspirantes ao Palácio do Planalto também eram nomes vulneráveis a um futuro impeachment. Tanto Bolsonaro quanto Fernando Haddad eram refratários ao establishment político e mantinham altas taxas de rejeição do eleitorado. Ao vencedor, caberia a montagem de uma ampla engrenagem de apoio para além de seus seguidores nas redes sociais. Com mais de 57 milhões de votos, Jair foi o vitorioso. Em vista do esfacelamento do governo no rescaldo do Covid-19, caminha para o cadafalso previsível.

O caminho para o impeachment na Nova República é sinalizado pela recessão econômica, pavimentado pelo rompimento com o bloco governista e acelerado por defenestrações ministeriais. 2020 não está inovador nesses aspectos. Ambições presidenciais dos ministros recém-defenestrados Moro (Justiça e Segurança) e também Luiz Henrique Mandetta (Saúde) haviam sido apontadas antes mesmo da posse do atual ministério. Suas saídas as reforçam.

A partilha dos custos do enfrentamento com os governos estaduais e municipais exauriu a já pequena base de apoio do governo Bolsonaro. Enfrentamentos públicos com governadores reduziram a capacidade de coordenação e aceleraram a propagação da enfermidade – além de reforçar a figura do governador de São Paulo João Dória como líder informal da oposição. No Congresso, além de ser obrigado a ampliar substancialmente o auxílio econômico por pressão dos parlamentares, o governo colheu derrotas memoráveis como as do Programa Verde Amarelo. Em contraste com o diminuído perfil do Planalto, o presidente do Congresso Rodrigo Maia aumenta seu prestígio como mediador junto às classes política e empresarial, além de gozar de inesperada popularidade após a ampliação do “coronavoucher”.

A posição periclitante de Paulo Guedes (Economia) foi agravada pelo enfrentamento do coronavírus. Sob pressão do Congresso, um autointitulado liberal foi forçado a improvisar, no espaço de uma quinzena, o mais ambicioso pacote de auxílio econômico do país desde a Crise de 1929 – em detrimento da retórica de austeridade e expectativas de sanear as finanças públicas. Ao mesmo tempo, políticas de contenção da epidemia jogavam o país da estagnação de 2019 rumo ao precipício econômico. De acordo com o Banco Mundial, a contração no ano supera 3% do PIB. Um coquetel volátil de desaquecimento, desemprego, inflação insinuante e pressão por seguridade social implodiu os planos do “posto Ipiranga”.

O Covid-19 trouxe enormes desafios para um pacto federativo corroído. Diferentes governos estaduais e municípios decretam quarentenas, lockdowns e a flexibilização dos mesmos – ao passo que o Planalto hesita, com a base rachada e portador de más notícias. A incapacidade de produzir uma ação coordenada entre diferentes níveis de autoridade e as controvérsias entre ‘partidários’ da economia e da saúde públicas aceleraram a disseminação da doença.

No momento em que se rompem os elos entre os grupos que viabilizaram Bolsonaro, uma recomposição política está em curso no Brasil, após 100 mil casos de coronavírus. Como nos impeachments de 1992 e 2016, o cenário de 2020 aponta para uma convergência ao centro. Um conservadorismo moderado sob a égide dos grandes partidos da Nova República – PMDB e PFL/DEM – foi a resultante das quedas de Fernando Collor de Mello e Rousseff. A condução partilhada do enfrentamento da doença é uma dos caminhos para lograr essa acomodação.
Além das denúncias de Moro, a renegociação de papéis entre elites tradicionais é insuficiente para pavimentar um novo governo. Após a composição de governos improvisados, Itamar Franco e Temer buscaram alhures inspirações para inovações políticas. Os grupos recém-chegados ao poder buscarão elementos para legitimar sua participação sobre novas bases.

Mais uma vez neste século, o Brasil se vê numa sobreposição de crises, carente de um projeto estruturado, sustentável, inclusivo de futuro. Navegando no ritmo de turbulência recorrente, o país novamente se desconhece.

Os desafios de 2020 ressaltaram essa inconveniência. Às vésperas do segundo bicentenário da independência, ainda há tempo para trazer respostas.







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