Artigo: Democracia da exaustão – em meio à pandemia, o Brasil vai às ruas

Foto: Ilustrativa

“A gente fala, protesta:
– Nessa terra nada presta
O povo é lerdo, indolente…
É a farra, ninguém trabalha
A peste a pátria amortalha
Sob o sol rude, inclemente…”

(Djalma Andrade, “Brasil”, 1938)

Instituições operando fora de seus parâmetros, por décadas. A flexibilidade atingida proporciona uma acomodação, paulatinamente tornada indispensável ao funcionamento do sistema político. A Nova República – o mais longevo regime político democrático da história brasileira – convive com a acomodação de suas instituições desde seus momentos fundadores. A lenta transição da ditadura militar para o governo indireto dos civis foi atravessada por episódios de protagonismo do Judiciário e Legislativo (em frequentes papéis inesperados). O ciclo de impeachments presidenciais iniciado logo após a promulgação da Constituição (1988) trouxe um relativo enfraquecimento do Executivo, ao passo que a emenda constitucional da reeleição (1997) ampliou os poderes imperiais do Planalto.

A acomodação das instituições impede que o sistema político se engesse diante das transformações sociais. Ao assumir o papel de árbitro político fundamental a partir do julgamento do “Mensalão”, o Judiciário deu vazão a uma sociabilidade associativista, baseada em legalidade estrita. A ascensão de “novas classes médias” e a sedimentação de grupos de interesse foram possibilitadas pela estabilidade econômica atingida com o Plano Real (1993-94). Ao mesmo tempo que a economia do país buscava retomar a industrialização pós-“década perdida”, a ascensão dos serviços e a crescente influência do agronegócio empurravam as forças sociais para novas coordenadas. O Real foi a ponta de lança das reformas do estado que marcariam os próximos 20 anos, por iniciativa do Executivo. Coube ao Congresso o papel de complementar o ímpeto legislador dos governos Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva (ambos também investiram pesadamente na “diplomacia presidencial”). Após o grito das ruas (2013) e o impeachment de Dilma Rousseff (2016), o Congresso retomou o centro gravitacional da pólis, com um de seus expoentes (Michel Temer) no Planalto, em busca da retomada da agenda de reformas do estado, sob a batuta das forças econômicas do agronegócio, já no contexto de uma brutal recessão, após ciclos de superconsumo e endividamento.

Nesse contexto, as instituições mantiveram entre si acordos informais de distância tática. Congresso, Planalto, tribunais, opinião pública e mídia (além de seus representantes nos estados e municípios) pressionaram uns aos outros, no mais das vezes entre colchões. O pano de fundo de crescimento econômico com inclusão paulatina de novas elites manteve em voga o pacto da jovem República, com ganhos e perdas assimiladas paulatinamente por cada setor sem ameaçar o sistema.

Entremeado com esses equilíbrios, a Nova República deu vazão periódica ás ruas. Filho da frustração parcial das Diretas-Já (1984), o regime foi atravessado pelas manifestações dos Caras-Pintadas (1992) que ajudaram a empurrar Fernando Collor de Mello ao cadafalso, e pelas Jornadas de 2013, que romperam duas décadas de crescimento com inclusão social ao demandar “mais democracia”.

Perto dessas três grandes ondas de manifestações populares, as ruas do país em Setembro de 2021 se apequenaram. Tanto as manifestações do dia da Independência – organizadas com o aval do governo federal – como a de seus opositores no dia 12 ficaram muito aquém, em termos numéricos. Em termos práticos – além de facilitar a disseminação do novo Coronavírus com aglomerações quase simultâneas – escancararam o diminuto apelo político do Planalto e a divisão cerrada das oposições. O duplo fracasso político traz mais dúvidas que respostas sobre o futuro da pólis.

A flexibilidade de décadas das instituições, operando no limite de seus parâmetros constitucionais, sustentou um precário equilíbrio dinâmico. O esgarçamento progressivo desses elos trouxe a possibilidade de um colapso por exaustão – caso um dos participantes tiver condições de os romper.

O governo Jair Bolsonaro tornou essa possibilidade (a ruptura institucional por exaustão) realidade. Em parte por suas escolhas, em grande medida dadas as consequências da pandemia da Covid-19.

A despeito de seus flertes retóricos com golpes de estado, o presidente rompeu com o frágil pacto que viabilizou a Nova República ao reclamar para si poderes constitucionais, ao se opor aos atos executivos do STF e aos atos judiciais da CPI da Pandemia – à medida que Judiciário e Legislativo fechavam o cerco a integrantes do governo federal, aos filhos do presidente e ao próprio Bolsonaro. Acuado politicamente num país estagnado (caso singular entre as grandes economias pós-vacina), desfrutando de 60% de impopularidade doméstica e sofrendo humilhações no plano internacional, o mandatário empurrou sua candidatura em 2022 para as raias do imponderável. Sem legenda, pode nem buscar a reeleição. No entanto, seus arroubos de insatisfação jogaram o Planalto contra os outros poderes da República, numa espiral de volatilidade capaz de paralisar um país pasmo.

A governança colaborativa da Nova República (qualificada ora como “semipresidencialismo”, ora como “presidencialismo de coalizão”) não prescinde de fartas doses de acomodação. O recuo épico de Bolsonaro após o fiasco das manifestações que se apropriaram da efeméride patriótica não surpreende. A veemência desse recuo, no entanto, ecoa a posição desconfortável de outros agentes (o STF, simbolizado por Alexandre de Moraes, e o Congresso, via intervenção de Temer). A ruptura do pacto reposiciona peças no tabuleiro da política nacional, a contragosto dos que ficaram em casa.

Por sua vez, os principais presidenciáveis que foram às ruas dia 12 – o governador de São Paulo João Dória (PSDB) e o ex-governador do Ceará Ciro Gomes (PDT) – dividiram atenções, sem somar forças. Pesquisa da USP sobre os manifestantes desse dia deram apenas 14% de intenção de votos a Ciro, contra 12% do ex-presidente Lula – ironicamente, um dos alvos das duas manifestações desse mês. Mesmo em plena Avenida Paulista, Doria viu suas intenções de votos apenas empatarem com Ciro.

Por hora, após as ruas, temos silêncios.

Um efeito inesperado d de Setembro foi tornar Lula o grande eleitor de 2022. Seus índices eleitorais aumentaram, à medida que crescia a rejeição aos demais. A antecipação da campanha eleitoral em contexto pandêmico fez Lula e o PT se fecharem em copas. O mistério aumenta incertezas – o que podem dizer às inquietações do país desde o conturbado ocaso de sua sucessora no Planalto? Tarefa que não respeita silêncios e que nostalgias podem não ser capazes de abarcar.

A soma das forças políticas que ambiciona o Planalto pode ser menor do que em anos anteriores. Os efeitos de suas ações se agigantam, entretanto, no contexto pandêmico. A explosão de atividade no plano executivo pouco se articula com ações de outros poderes da República (ainda que tenham utilizado fartamente como munição políticas públicas estabelecidas por entes federativos). Parecem ignorar que o regime lhes reserva um lugar entre os poderes, não um protagonismo solitário.

Longe das ruas, o Judiciário reforça seu papel de supervisão tanto com o STF quanto com o Tribunal Superior Eleitoral encabeçado por Luís Roberto Barroso. No Congresso, sede dos freios e contrapesos de investigações e orçamentos, nomes tradicionais se oferecem como alternativas. O MDB de Temer busca sua reinvenção na CPI. Já o DEM almeja a maior bancada, em fusão com o PSL.

Se o presente ainda não passou, o futuro é incerto. Entre desconfortos, revivals.

O país dos 600 mil mortos por Covid-19 (vice no ranking planetário) vê sua relevância como economia industrial despencar (14º lugar). Na ONU, seus representantes encenam uma comédia invisível. Às vésperas da COP-26, o Brasil se tornou pária no quesito Meio Ambiente. Poucos amigos, pouca influência, pouca visibilidade – um roteiro lamentado por diplomatas brasileiros na Liga das Nações, há um século atrás. O país, de novo, se apequenou.
Em busca do equilíbrio perdido, as forças sociais e as instituições da Nova República tateiam, ainda distantes da normalidade prometida com a chegada em tempo recorde da imunização. A premissa do equilíbrio supera as limitações de interesses e capacidade de ação dos protagonistas. Um país prostrado aguarda, com cautela, o momento de respirar enfim, ares de normalidade – democrática?

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