Artigo: 40 anos de Democracia, 60 anos de Ditadura – O Brasil na encruzilhada

Ato pela democracia. Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil

Ato pela democracia. Foto: Paulo Pinto/Agência Brasil

A ditadura civil-militar, que interrompeu a trajetória democrática do Brasil em 1964, começou a desabar em 1984 – quando a bandeira das eleições diretas para a Presidência da República levou milhões de brasileiros às ruas. O movimento popular e apartidário das Diretas-Já não conseguiu convocar eleições, mas empurrou o regime ladeira abaixo.

A ditadura acabou em 1985, com a vitória do líder das Diretas-Já Tancredo Neves. Duas décadas de autoritarismo se calaram, entre fracassos econômicos e frustrações políticas. Nem mesmo a morte súbita de Tancredo salvou o moribundo regime do ocaso. O primeiro civil a governar o país desde 1964 foi enterrado como o mártir da democracia.Diante da exaustão e dos fracassos, as forças do autoritarismo estavam desarmadas. Passados quarenta anos, já com eleições diretas, o Brasil da democracia convive com suas contradições.

Os candidatos que disputaram o segundo turno das primeiras eleições democráticas pós-Tancredo (1989) compartilharam um futuro inquietante. Tanto Fernando Collor de Mello quanto Luis Inácio Lula da Silva seriam eleitos presidentes da República. Além de dezenas de milhões de votos, tiveram altos índices de popularidade. Ambos também foram condenados à prisão a seguir (Collor pelo STF, Lula pela Operação Lava-Jato).

As distâncias ideológicas e os legados desigual dos governos não impediram a coincidência. Um terceiro presidente seria levado ao cárcere – Michel Temer, que herdou o mandato de Dilma Rousseff após o impeachment da primeira presidenta reeleita do Brasil (2016). Além de Rousseff, Collor teve o mandato abreviado pelo instrumento do impeachment (1992). Apenas dois presidentes eleitos terminariam integralmente seus mandatos nos últimos 40 anos, Fernando Henrique Cardoso e Lula (entre 1995 e 2010).

A recorrência do cárcere e do impeachment na Nova República chama atenção para outros poderes da República subestimados pelas Diretas-Já. O Legislativo permaneceu como fiel da balança da governabilidade desde os anos Sarney (1985-1990) e sua influência aumentaria com a chegada da Constituição de 1988. Já o Judiciário emergiu
como árbitro político fundamental no século 21, após o julgamento do Mensalão (2012).

A fórmula complexa do presidencialismo de coalizão se tornaria mais confusa ao longo das décadas de crises econômicas entremeadas com convulsões políticas. O sonho de um Brasil potência que enterrou a última ditadura foi revivido na democracia. A inflação foi contida e a desigualdade social parcialmente revertida. Por algum tempo, o Brasil desfrutou do status de uma economia emergente com ambições de fazer política global.

Domesticamente, sobreposições entre poderes da República coincidiram com ondas de mobilização popular – os caras-pintadas de 1992, “fora FHC” após a desvalorização do Real (1999), o dilúvio de Junho de 2013, os movimentos pelo impeachment de Dilma em 2016 e a defesa do governo Jair Bolsonaro durante a pandemia da Covid-19 (2021-22).

Quantitativamente, por vezes essas manifestações do regime democrático superaram as estatísticas de 1984. Em termos qualitativos, os impactos de cada onda de mobilização foram desiguais. Manifestações, ora pelo impeachment presidencial, ora a favor dos mandatários em crise, são parte indispensável do repertório democrático da atualidade. Ainda assim, a ação popular jogou mais água na fervura do desgaste entre o Planalto e o Congresso. Nos últimos anos, a volátil caldeira em ebulição foi parar nos tribunais.

O sistema político brasileiro convive com deficiências endêmicas. A parca representação feminina e o acesso elitizado às candidaturas se traduz na ossificação dos mandatos. A fraqueza partidária, alimentada por infidelidade sistêmica e pela amnésia do eleitorado, dificulta a sociedade em cobrar dos eleitos responsabilidade, probidade ou resultados.

A recorrência dos vícios da República Velha e das ditaduras (que mantiveram Legislativo e Judiciário como marionetes funcionais) enfraqueceu as expectativas democráticas de 1984, prometidas pela Constituição cidadã e reiteradas pelo ritual das eleições diretas.

A população brasileira tampouco encontrou amparo para esperanças frustradas na atuação de outros poderes. Legislativo e Judiciário se mobilizaram ao sabor de impulsos próprios, nem sempre associados com a promoção do estado democrático de direito. As convulsões políticos entre 1989 e 2024 foram justificados pelo combate à corrupção. Paradoxalmente, o Legislativo se revelou a grande vítima dessas cruzadas moralizantes (após o resultado das urnas), com grande número de parlamentares eleitos destituídos do mandato ou mesmo presos no decurso do mandato, especialmente no plano federal.

Ações justificadas pelo combate à corrupção se mostraram particularmente atrativas para as ruas, afinidade seletiva que retroalimentou as tensões republicanas. Cruzadas anticorrupção invariavelmente desaguam no Judiciário. Uma vez que o sistema político atingiu grau de impasse considerável, a arbitragem judicial se tornou indispensável mas também inadequada, um tipo de tutelagem dos mandatários não-eleitos sobre a pólis.

Ao longo de quarenta anos de construção democrática, o centro gravitacional da política brasileira oscilou entre palanques e tribunais. Debates anticorrupção se mostraram mais atrativos ao eleitor do que a tediosa sequência de problemas estruturais e a confecção de políticas públicas. Os processos no interior do sistema permaneceram blindados aos olhos da opinião pública. A insatisfação cresceu de vulto, nessas décadas de espera por soluções que o desequilíbrio dos poderes tratava de fazer murchar quase de imediato.

O ensaio descoordenado de um golpe de estado em 8 de Janeiro de 2023 foi um sinal de desalento democrático. A sociedade brasileira descobriu que setores significativos de suas Forças Armadas nutriam ambições ilegítimas ilegais, descendentes diretas de 1964. À sombra do governo populista que investia em propaganda quando 700 mil brasileiros eram ceifados pelo mal do século, brotou o cogumelo da nostalgia autoritária.

A erosão dos poderes da Nova República por sua mútua fricção trouxe à tona fantasmas. Menos do que um golpe de estado e mais veemente que as manifestações governistas durante a pandemia, 8 de Janeiro representou a destruição simbólica dos poderes da República pelas mãos de uma turba enfurecida, indiferente ao convívio democrático. A
realização da frustração, canalizada para edifícios que simbolizavam a nova ordem. Frustração que dispensou mediações institucionais e se traduziu em violência mecânica.

A falta de apoio das casernas à manifestação de ódio civil manteve uma aparência de normalidade no país vivendo o “novo normal” imposto pelo horror do novo Coronavírus. Nos acostumamos a crer que a democracia vai bem, no seu quadragésimo aniversário.

Nos esquecemos que as ruas estavam vazias, em 2023. Antes e depois da insurreição.

Seja pelos efeitos persistentes da pandemia, seja por confiança desmedida (ou falta de opções) que nos levou a aquiescer diante da reação posterior de Judiciário, Legislativo e Executivo, a sociedade brasileira manteve silêncio inquietante a respeito da democracia.

40 anos após a ditadura e contados 60 anos do seu início, o silêncio democrático não faz jus aos mortos do autoritarismo ou da pandemia. Tampouco nos afasta das contradições que nos acompanham a cada nascer do sol. Não motiva os vivos a agir e mudar o futuro. O silêncio democrático é indevido. Depõe contra a Nova República em momento crucial.

* Artigo de autoria de Carlos Frederico Pereira da Silva Gama – professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Tocantins

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