A Nova República na encruzilhada das transformações

Nova República. Foto: Youtube

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A Nova República superou um terço de século de duração em Abril de 2019. Trata-se do mais duradouro período de vigência da democracia em terras brasis. A redemocratização engendrada em cautelosa negociação com duas décadas de ditadura militar sobreviveu à morte do primeiro eleito, a dois impeachments presidenciais e a uma série de crises econômicas do capitalismo globalizado.

Apenas em duas ocasiões em 34 anos um mesmo partido foi capaz de vencer o pleito presidencial e, em sequência, aumentar sua participação nos governos estaduais e nas duas casas do Legislativo.

Nas eleições gerais de 1994, o PSDB de Fernando Henrique Cardoso deixou a condição de um jovem partido (dissidência do PMDB na Constituinte) para se tornar a maior força parlamentar do Brasil.

Vinte e quatro anos depois, o PSL – dantes um partido nanico – colheu os frutos da avassaladora onda de popularidade de Jair Bolsonaro e se tornou uma das maiores bancadas do país. Os tucanos foram eivados ao Planalto como grandes beneficiários do Plano Real. Em contraste com a pujança dos números de 1994, Bolsonaro se caracterizou como liderança carismática da era digital. As vitórias de PSDB e PSL mostram a propensão da pólis brasileira a diferentes formas de projeção. O caráter pluralista da mesma esteve em evidência também ao longo de 13 anos de governo do PT.

A Nova República superou um terço de século de duração em Abril de 2019.

Entretanto, mesmo essa simultaneidade de vitórias de grande amplitude se mostrou efêmera em duração e insuficiente para lastrear projetos políticos de médio prazo.
O processo de alavancagem de ambos se desenrolou contra o pano de fundo da oscilação cíclica dos dois maiores partidos responsáveis pelo parto da Nova República.
O PMDB – outrora hegemônico entre Tancredo Neves e a Constituição Cidadã de Ulysses Guimarães – se apequenou de 1989 a 94. O esvaziamento do partido seria ainda maior e mais acelerado entre o interregno de outro de seus egressos, Michel Temer, e a surpreendente vitória do ex-capitão.

O PFL – dissidência do PDS, herdeiro da Arena – ressurgiu, como fênix, de prolongados debacles nessas ocasiões. Após naufragar com Fernando Collor, retomou a Vice-Presidência da República com Marco Maciel entre 1995 e 2002. Após contemplar um longo declínio no século seguinte, se tornou o esteio da governabilidade de Bolsonaro em 2019, além de comandar a Câmara com Rodrigo Maia.

O “presidencialismo de coalizão” – feliz construção de Sérgio Abranches – completa três décadas entre seus enigmas. Os vencedores das eleições presidenciais da redemocratização foram reféns da governabilidade parlamentar. Recorreram alternadamente ao PMDB (como o PT) e PFL (os demais).

Essa dinâmica peculiar gerou um desgaste societal no arco de tempo que vai desde 1985 até 2019.
Promessas de renovação da prática política foram paulatinamente esgarçadas pela construção cada vez mais precária das governabilidades. Em paralelo à multiplicação das máquinas partidárias, a partilha de responsabilidades entre entes da União e a sociedade civil engendrada pela Constituição cidadã contribuiu para a complexidade reinante. Seus mapas são amplos e os caminhares, idem.

As ruas estiveram cheias em 1992 e em 2013. Igualmente em 2015 e 2019, por razões diversas. Combinações variáveis de carestia, repúdio à corrupção, declínio da popularidade presidencial e descrédito no sistema político partidário foram o combustível para as maiores manifestações do período democrático no Brasil.

Os vencedores das eleições presidenciais da redemocratização foram reféns da governabilidade parlamentar.

A sociedade civil elevou seu aporte propositivo na pólis – uma promessa de 1988 – ao custo de sua estigmatização pelo operadores políticos formais. A proverbial “voz rouca das ruas” de meados dos anos 1990 se fez mais audível, por vezes decisiva, entre os Caras-Pintadas e o ocaso de Rousseff.

Outros grupos também ampliaram suas possibilidades, uns de forma mais previsível dentro do marco constitucional, outros alvo de menos expectativas, trazendo à baila um portfólio controverso. O Judiciário se tornou, um tanto quanto por inércia, árbitro político fundamental da pólis brasileira entre 1992 e 2018. A ascensão da proeminência das cortes se acelera nos impeachments, mas transcendeu a queda de mandatários. Os julgamentos do “Mensalão” e a Operação Lava-Jato foram marcos no transladar da dinâmica democrática – das ruas para os gabinetes e por fim, para as cortes.

Após a crise de 2008, os militares retornam ao centro da arena política. Primeiro a convite dos civis, no bojo de operações de paz multilaterais, megaeventos e da intervenção nas forças de segurança estaduais. Em seguida, se oferecem como elite mais eficiente na gestão pública que os herdeiros do Marechal Deodoro. Bolsonaro é um ponto de chegada dessa narrativa refundacional da República.

É nesse momento que a lógica tecnocrática retoma pleno fôlego no seio da democracia brasileira. A noção de que os operadores da política formal deve possuir uma expertise singular se acentua, ao longo do crescimento da influência do Judiciário e Forças Armadas, junto ao descrédito partidário. Esse diapasão se choca com as demandas de inclusão social e aprofundamento da democracia oriundas da sociedade civil, alimentadas por 20 anos de crescimento inclusivo entre 1993 e 2012. No período, o percentil de universitários passou de 1% para quase 5% de uma população crescente. A popularização das redes sociais ocorreu paralelamente à difusão do conhecimento científico, gerando uma nova polaridade de contradições numa jovem democracia na era da informação.

Em 2019, o sistema partidário vê no seu cerne um debate macroeconômico que não ocorre à revelia do cenário externo. A lenta recuperação pós-2008 foi particularmente desafiadora nos emergentes. A intensificação da contestação veio junto ao desencantamento com as fórmulas da “era de ouro” que deixaram um rastro de endividamento e semearam dúvidas quanto à sustentabilidade futura.

Na passagem da prosperidade competitiva para uma escassez conflitiva, o Brasil da Nova República chegou a uma encruzilhada de transformações. O investimento num futuro acolhedor vê o risco crescer de vulto diante das exigências do recurso de curto prazo à expertise. Os agentes tateiam, em busca de um começo de caminhada no qual o horizonte do possível está em jogo.

 

*Carlos Frederico Pereira da Silva Gama
Professor Visitante – Al Akhawayn University in Ifrane (Marrocos)
Professor de Relações Internacionais – Universidade Federal do Tocantins

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