Desintegração de esperanças: a União Europeia em meio à crise das democracias liberais

União Europeia. Foto: Reprodução

União Europeia. Foto: Reprodução

O segundo semestre de 2017 trouxe uma série de desafios para a União Europeia. Em Outubro, após realização de polêmico referendo, o governo da Catalunha declarou formalmente a independência da região. A medida foi rechaçada pelas instituições de Bruxelas. Com o apoio dos estados membros da União, o governo espanhol interveio e dissolveu o Parlamento local, convocando novas eleições para Dezembro. Os partidos independentistas acabam de obter uma maioria no novo Parlamento.

Na Áustria, o veredito das urnas surpreendeu a Europa. Também em Outubro, o conservador Partido do Povo Austríaco (ÖVP) venceu eleições com uma plataforma que mesclava austeridade econômica e o controle das fronteiras europeias, durante a crise humanitária associada com a guerra civil na Síria. Prometendo manter imigrantes do Oriente Médio longe da Áustria, o jovem ministro das relações exteriores Sebastian Kurz formou o novo governo em parceria com o Partido da Liberdade da Áustria (FPÖ), acusado pelas instituições europeias de ser um partido fascista. A guinada rumo à direita xenófoba na Áustria não é uma novidade. Em 2002, o FPÖ passou a integrar o gabinete do conservador Wolfgang Schussel. Após declarações simpáticas ao nazismo por parte do líder do partido Jorg Haider, o país sofreu sanções diplomáticas da União Europeia. Em 2017, o cenário se repete em outras partes do continente. Na Polônia, o governo conservador do Partido Lei e Justiça acaba de sofrer sanções da União por levar adiante políticas de enfraquecimento do poder Judiciário.

Enquanto isso, as negociações do Brexit se aceleraram, na direção contrária à promessas do governo conservador britânico reeleito em meados de 2017. A saída do Reino Unido custará dezenas de bilhões de euros e não será concretizada antes de 2020. Por fim, na Alemanha, o crescimento expressivo de partidos de extrema direita nas eleições legislativas trouxe problemas para a reeleita Angela Merkel. A chanceler democrata-cristã não conseguiu uma maioria no Parlamento e buscou um acordo com seus arquirrivais socialdemocratas para formar um governo de coalizão – situação que ocorreu apenas duas vezes nos últimos 70 anos. O caso da Alemanha é representativo da crise mais ampla que atinge as democracias liberais não apenas na Europa, mas ao longo de todo o planeta.

Após a Segunda Guerra Mundial, a Alemanha foi dividida em zonas de ocupação pelas potências vencedoras (União Soviética, Estados Unidos, Reino Unido e França). As regiões ocupadas pelos soviéticos se tornaram a República Democrática da Alemanha (Alemanha Oriental) e as demais se uniram na República Federal Alemã (Alemanha Ocidental). Por quatro décadas, as Alemanhas foram potências econômicas nos blocos da Guerra Fria (divididos, a partir de 1961, pelo famoso Muro de Berlim). A RDA era a segunda maior economia planificada integrante do COMECON e a RFA, segunda maior economia capitalista da Comunidade Econômica Europeia (CEE), antecessora da União.

Dois grandes partidos dominaram a política da Alemanha Ocidental a partir de 1949. A Democracia Cristã (CDU) governou durante 28 anos e a Social-Democracia (SPD), 13 anos. Com o fim da Guerra Fria, a RFA incorporou a RDA em 3 de Outubro de 1990. Na Alemanha reunificada as principais forças políticas permaneceram aquelas do período do chanceler Konrad Adenauer. Democratas-Cristãos e Sociais-democratas obtiveram, em média, 70% da preferência do eleitorado nas urnas desde 1990.

Ao longo da Guerra Fria, a plataforma política desses partidos convergiu para um consenso vitorioso. Em primeiro lugar, conceberam a República Federal Alemã como um estado democrático de direito. Em seguida, promoveram uma economia baseada na indústria de ponta. Em termos de segurança, a Alemanha Ocidental fôra impedida de se rearmar pós-1949. Sua atuação se focou na estabilidade regional, com a consolidação de uma força de prontidão europeia que substituiria progressivamente as ogivas nucleares estacionadas em ambos os lados do Muro pelas superpotências em disputa. Por fim, a RFA foi projetada como um dos corações da Europa integrada e uma plataforma de ampliação rumo ao Leste Europeu (simbolizada pela Ospolitik do chanceler socialdemocrata Willy Brandt, que desafiou a bipolaridade da Guerra Fria, ao abrir canais de negociação com a RDA na década de 1970).

Uma geração após a reunificação alemã e o Tratado de Maastricht (1992), a União Europeia incluía 28 estados, com presença significativa de ex-integrantes do bloco soviético. Reunificada, a Alemanha foi pioneira no reconhecimento da independência de Croácia e Eslovênia na guerra civil iugoslava. O país se engajou ativamente nas operações de paz sob a batuta da Organização das Nações Unidas (ONU) e, de forma controversa, participou de operações militares da Europa na província (hoje estado) do Kosovo, 10 anos após a queda do Muro de Berlim. A nova Alemanha dos democratas-cristãos Helmut Kohl e Merkel e do socialdemocrata Gerhard Schroeder se tornou a maior economia da Europa, uma das 5 maiores do mundo, bem como um dos 3 maiores exportadores. A integração da RDA e a imigração do Leste Europeu e Oriente Médio mantiveram o país de mais de 80 milhões de habitantes com crescimento populacional superior aos vizinhos.

O ponto de virada foi a crise financeira internacional de 2008. A crise derrubou a aliança entre sociais-democratas e verdes liderada por Schroeder. Cerca de 10% do eleitorado não foi às urnas. Entre 2005 e 2009, Democratas-Cristãos e Sociais-Democratas perderam 7 milhões de votos. Pela primeira vez após a Reunificação, a soma de seus votos caiu abaixo da casa dos 60% do total.

As respostas à crise transformaram a União Europeia. Considerados pilares da integração, o livre mercado e a liberdade de movimento se viram subitamente convertidos em prolongada recessão e dilatada crise humanitária. Instituições comunitárias, dantes vistas como provedoras de soluções e consideradas como vanguarda das políticas públicas internacionais, passaram a ser consideradas como parte do problema. Ao invés de enfocar a convergência de políticas entre os estados-membros e agentes sociais, as ações da UE adquiriram uma intensidade coercitiva inédita na escala regional. As políticas comunitárias passaram a depender de um sistema estrito de regras e punições, o que as aproxima das práticas do Fundo Monetário Internacional e da Organização Mundial do Comércio.

A ascensão de Merkel ao posto de Chanceler marca o período no qual políticas da UE passam a ser vistas como mecanismos competitivos que favorecem, em última instância, uma hegemonia alemã, contra o pano de fundo da retração das economias mais endividadas da União (os PIIGS – Portugal, Itália, Irlanda, Grécia, Espanha). Dani Rodrik caracterizou essa transformação no conteúdo das políticas comunitárias como um experimento de integração regional em meio à hiperglobalização.

Essas respostas da UE à crise entram em contradição com as lições do período pós-guerra. Durante o longo mandato democrata-cristão de Adenauer, a RFA teve parte de suas dívidas perdoadas pelos credores. O acordo, sacramentado na Conferência de Londres em 1953, se provou fundamental para o subsequente “milagre econômico” que alçou a RFA à proeminência na CEE. 60 anos depois, a Alemanha de Merkel nega à Grécia do Syriza o alívio da sua dívida e mantém as tensões em curso.

Uma reversão de expectativas também marcou questões de segurança. A Alemanha de Merkel foi um dos destinos preferenciais dos refugiados da guerra civil na Síria. O país acolheu mais de 1 milhão de pessoas no último biênio – numa significativa demonstração de solidariedade internacional.
Não obstante, o apoio do eleitorado às políticas da Chanceler passou a ser relutante. Um estupro coletivo atribuído a imigrantes do Oriente Médio no réveillon de 2015 em Colônia e o atentado num mercado de Natal em Berlim (2016), reivindicado pelo grupo terrorista ISIS, tornaram a opinião pública mais relutante à política de “portas abertas” de Merkel, endossada pela União Europeia.

Em contraste com caracterizações da União como um sistema de governança de múltiplos níveis, os estados-membros voltam ao centro das atenções na Europa convulsionada por crises e temerosa do populismo. Discursos de ódio, supremacia racial e xenofobia retornam ao léxico político e às urnas. Ansiedades políticas referentes às fronteiras comunitárias fazem o relógio voltar para 1991.

Na crise, as promessas da integração se tornaram menos persuasivas. A União Europeia permanece, doravante, em fluxo – menos uma comunidade de destino e mais um experimento, no seio do qual rupturas abruptas ameaçam a lenta acumulação de conquistas. Consequências não antevistas da globalização (tais como aumento da complexidade, tomada de decisões dificultada, enfraquecimento normativo, instituições contestadas na representatividade e eficiência) trouxeram o projeto bem-sucedido da Alemanha do pós-Guerra para a crise das democracias liberais no século XXI. Desilusões eleitorais alimentaram as tentações da autarquia, impulsionando populismos e autoritarismos.

A miragem de soluções simples e imediatas para problemas globais complexos através da exclusão dos “outros” constitui uma grave ameaça para o futuro das democracias.

*diretor de Assuntos Internacionais, professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Tocantins (UFT)

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