A ‘arte da negociação’ nas Coreias e Irã: Donald Trump e um mundo em transformação

O primeiro semestre de 2018 trouxe surpresas associadas ao presidente dos Estados Unidos, Donald Trump. A primeira delas veio em Abril: após tensas trocas de e-mail com o líder norte-coreano Kim Jong-Un, Trump foi um dos patrocinadores da primeira cúpula de paz na península coreana desde 1953. O encontro entre Kim e o presidente da Coreia do Sul Moon Jae-In ocorreu na zona desmilitarizada entre os países, em fins de Abril, com as bênçãos de Trump e do presidente chinês Xi Jinping. A segunda surpresa veio logo a seguir, em Maio. Após a visita de estado do presidente francês Emmanuel Macron à Casa Branca, Trump anunciou a saída unilateral dos Estados Unidos do acordo nuclear com o Irã, maior trunfo de política externa da administração de Barack Obama.

Analisadas conjuntamente, as ações de política externa de Trump visam aliviar a pressão doméstica sobre seu contestado governo. O mandatário é alvo de múltiplas investigações. Uma das vertentes é a ligação de membros de seu governo com o governo da Rússia durante as polêmicas eleições de 2016. Outra delas incide sobre transferência de fundos para seu assessor e genro, Jared Kushner. Uma terceira vertente, comandada pelo FBI, investiga pagamentos feitos pelo advogado pessoal do presidente a diversas mulheres em busca de garantir silêncio preventivo durante a corrida eleitoral.

O acordo com as Coreias cria uma novidade positiva na política externa e engaja um dos principais alvos da agressiva política comercial de Trump numa dinâmica diplomática de ganhos múltiplos. A China de Jinping acaba de sofrer sanções seletivas do governo Trump sobre produtos industriais, promessa de campanha que alavanca a popularidade presidencial em regiões industriais decadentes (o “Rust Belt”). A China retaliou com sanções sobre produtos agrícolas, enfraquecendo a base de apoio de Trump em diversos “swing states” decisivos para a improvável vitória sobre Hillary Clinton.

A cúpula entre as Coreias prenuncia o encontro entre Trump e Kim, após seguidas visitas (também surpreendentes) do líder norte-coreano à China de Jinping. Além de projetar suas imagens como estadistas que priorizam a “paz mundial” diante de seus objetivos particulares, os líderes dos EUA e China encontram na península coreana espaço negocial para aliviar a disputa comercial em curso. A retaliação chinesa não ocorreu na proporção temida pelos fazendeiros norte-americanos. Trump não deu seguimento à espiral de sanções, tendo inclusive aliviado medidas anteriores referentes ao aço e alumínio para um conjunto de países emergentes (dentre os quais se inclui o Brasil).

Além de cumprir promessas de campanha (para surpresa dos críticos mais céticos), Trump mantém como parte integrante de sua política comercial um bilateralismo punitivo, ao arrepio das normas multilaterais. Instituições como a Organização Mundial do Comércio temem uma guerra tarifária de proporções desconhecidas entre as maiores economias de um mundo parcialmente globalizado.

A aceitação tácita de uma Coréia do Norte nuclearizada inflige novo golpe em normas multilaterais que perduram por décadas (caso do regime de não-proliferação nuclear). O caráter seletivo dessa aproximação (que Trump associar com capacidades pessoais, como parte integrante do que chama de “arte da negociação”) fica evidente, à luz do rechaço por parte do mesmo Trump do acordo costurado a duras penas por Obama com Irã, União Europeia e Rússia, após uma série de malogros (como a proposta feita por Brasil e Turquia ao então presidente Mahmoud Ahmajinehad em 2010).

A saída dos EUA do acordo nuclear coloca a responsabilidade de supervisionar o programa nuclear iraniano nas mãos de reticentes aliados europeus. Ao mesmo tempo, atribui o fracasso do acordo aos principais aliados do regime da Revolução Islâmica, que vem a ser a grande dor de cabeça doméstica de Trump em 2018: a Rússia do reeleito presidente Vladimir Putin.

O timing da decisão é sintomático: as investigações de ingerência russa nas eleições norte-americanas se aceleraram. Em Abril, a UE, os EUA e países aliados impuseram sanções econômicas à Rússia, no rescaldo do internamento do ex-espião Sergei Skripal em Salisbury, Reino Unido, por envenenamento com o composto Novichok. As sanções foram acompanhadas pela maior expulsão conjunta de diplomatas russos após o fim da Guerra Fria. O Reino Unido de Theresa May aproveitou a janela de oportunidade para acelerar as difíceis negociações econômicas do Brexit com a União, referendadas favoravelmente dias após o anúncio das sanções e expulsão coletiva de diplomatas.

O sucesso da ação coletiva dos EUA, EU e aliados prenunciou o bombardeio seletivo de instalações militares na Síria em Abril, suporta retaliação de Trump ao uso de gás venenoso por parte do regime de Bashar Al-Assad contra as forças rebeldes na cidade de Khan Sheikhun. Maior aliada do regime sírio, presença decisiva no teatro da guerra civil, a Rússia negou as acusações (sem fornecer, porém, evidências) e buscou amparo na Organização para a Proibição de Armas Químicas – sem sucesso.

A espiral de acusações relativas ao uso de gás venenoso (arma banida da cena internacional após a Primeira Guerra Mundial) colaboram para estigmatizar a Rússia diante da comunidade internacional e reforçam a capacidade de articulação internacional de Trump como líder do “Ocidente”. Ambos efeitos diminuem o peso de acusações de ingerência russa na eleição de 2016 e também atrelam a diplomacia presidencial ao objetivo de tornar os EUA “grandes novamente”. O rompimento com o Irã é outra medida que alavanca a popularidade do milionário do setor imobiliário em ano eleitoral.

A busca da aquiescência chinesa se articula com a tentativa de isolar a Rússia, logo após as reeleições dos presidentes Jinping e Putin. Além de promover objetivos domésticos do presidente dos EUA, a Doutrina Trump sinaliza uma perda de fôlego das democracias liberais frente ao crescimento de regimes que contestam as regras prevalentes no sistema internacional após o fim da Guerra Fria. A crise das democracias liberais se torna mais aguda e visível, diante da cautela e ação reativas que seus protagonistas adotam, face à ascensão da China e à busca de protagonismo da Rússia.

*Professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Tocantins (UFT)

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