Claudio Francioni. Foto: Nicolas Renato Photography

Claudio Francioni

Carioca, apaixonado por música. Em relação ao assunto, estuda, pesquisa e bisbilhota tudo que está ao seu alcance. Foi professor da Oficina de Ritmos do Núcleo de Cultura Popular da UERJ, diretor de bateria e é músico amador, já tendo participado de diversas bandas tocando contrabaixo, percussão ou cantando.

Viver do passado, viver no presente

Por Pedro de Freitas

Mais um ano vai terminando. E que fará parte da nossa história, seja bom ou ruim. Não me julgo saudosista. Como disse Paulinho da Viola uma vez, meu tempo é agora. Obviamente, o “agora” engloba uma cota de experiências e aprendizados que compõem nossa vivência e que determinam nossa vida mais adiante.

Percebo que no mundo das artes, viver do passado é uma tentação grande para músicos que em um determinado momento gozaram da aclamação do público e da crítica. Momentos de inspiração e genialidade possuem sua brevidade, e por vezes nunca mais voltam. Há formas dignas de viver do passado, e outras nem tanto. Vimos isso claramente no Rock In Rio deste ano, com uma performance arrebatadora dos velhinhos quase octogenários do The Who, e aparições constrangedoras de Jon Bon Jovi e Axl Rose, no Bon Jovi e Guns N’Roses, respectivamente. Mas me interesso mais por outro tipo de artista, aquele que usa o passado como um elemento do presente ou uma força transformadora para o futuro. Os artistas que fizeram os dois álbuns que mais gostei este ano possuem este componente, embora seus trabalhos não possam ser mais diferentes. Os dois álbuns são “Carry Fire”, de Robert Plant, e “DAMN.”, de Kendrick Lamar.

Vamos por partes. Primeiramente o disco que marca o retorno de Robert Plant. O impacto inicial já é sentido ao observar a foto da capa. Sem muitos retoques, sem pretensão de esconder ou maquiar a passagem do tempo. Iconoclasta, a foto exibe Plant no esplendor de seus quase 70 anos, e suas orgulhosas rugas conquistadas em décadas de estrada. As músicas possuem todo o conteúdo amealhado em anos e anos das mais diversas experiências; mas aqui há zero de saudosismo. É uma obra contemporânea, ou melhor, atemporal. Plant conhece os elementos que tornaram sua música resiliente ao tempo, porém não se apega ao passado. Pérolas como “Dance With You Tonight”, “Keep It Rid” e “Bones of Saints” são desafiadoramente contemporâneas, sem abrir mão daquele “molho” que transformou Plant em uma lenda viva do rock. É o passado agregando qualidade ao presente que Robert Plant AINDA VIVE. A mídia hoje tem um alcance que jamais imaginamos ser possível. As redes sociais transformam artistas atuais em algo a mais do que são realmente, e obras do passado em ícones inatingíveis. Mas não tenho medo de desafiar essa ordem de coisas a afirmar: “Carry Fire” é um trabalho ao nível do que Robert Plant fez quando pilotava o microfone do Led Zeppelin. Peço que o caro leitor não
me mande pedradas antes. Ouçam o disco primeiro; falem depois. Não encontrarão um disco repetindo 1972 ou 1975, e sim um trabalho brilhante de 2017.

Por fim, Kendrick Lamar. O rapper lançou nada menos que quatro discos sublimes nos últimos seis anos. Uma produção estelar que o torna comparável a grandes ídolos da música do passado; é provavelmente, o artista que atravessa o melhor momento na música pop contemporânea. Ouvi “DAMN.” pela primeira vez na época em que assistia a ótima série “The Get Down” no Netflix. Vi (ainda que de forma dramatizada) o contexto em que surgiu o Rap/ Hip Hop e ao mesmo tempo ouvi uma obra do gênero destinada a ser uma referência dos tempos atuais. Sou um roqueiro de origem. Mas até hoje bato de frente com amigos que não aceitam bem o rap:  música feita a partir de colagens sonoras, poesia urbana desacompanhada de melodia. Mas é óbvio o engenho e a arte que envolve a criação nesse gênero musical que significou um marco e uma ruptura, tanto em termos musicais quanto comportamentais, algo como o punk foi para jovens brancos pobres das grandes metrópoles. A rejeição por parte de quem relativiza o contexto artístico do hip hop não é ignorada por Kendrick Lamar, uma das cabeças pensantes do rap atual. “DNA.”, uma das primeiras músicas de “DAMN.”, é praticamente dividida ao meio pela declaração gravada do âncora da Fox News, Geraldo Rivera, que disse que “o hip hop causou mais danos aos negros que o racismo”. O hip hop, por definição, literalmente se alimenta do passado para projetar o presente. Hoje não é feito mais como nos heroicos tempos da “santíssima trindade” do Bronx: Afrika Bambataa, Grandmaster Flash e Kool Herc. Possui um gene mutante que é característico da própria forma como é feito. Entretanto, ouso dizer que no gênero nunca houve alguém com a habilidade para construir rimas, o lirismo para a poesia, e o senso artístico e musicalidade de Kendrick Lamar. Se o disco “Good Kid M.a.a.d City” (2012) era um testemunho autobiográfico, e o excepcional “To Pimp a Butterfly” (2015) era uma reflexão filosófica sobre seu papel na sociedade, “DAMN.” é uma afirmação. Os nomes das músicas, palavras colocadas como verbetes em um dicionário nos levam a pensar que os dilemas de “To Pimp a Butterfly” foram ao menos parcialmente respondidos. A mistura exuberante de soul anos 70 e jazz de “To Pimp…” dá lugar a uma base mais econômica. A partir das referências explícitas do passado em seus antigos trabalhos sai uma projeção do futuro a partir de “DAMN”. Como se Kendrick Lamar estivesse hoje mais seguro de seu papel como artista diante da sociedade. É muita responsabilidade. Inclusive a de ocupar o trono do hip hop atual.

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