Do pop ao jazz com a mesma fluência, Nico Rezende lança DVD

Foto: Divulgação

O DVD Nico Rezende canta Chet Baker pode ser considerado a mais agradável e sofisticada surpresa da discografia deste cantor, compositor, pianista, violonista e arranjador paulistano. Quando Nico veio ao mundo em 13 de outubro de 1960 com o nome de Antônio Martins Correia Filho, o cantor e trompetista norte-americano já era uma lenda viva no universo do jazz. Chesney Henry Baker Jr. nascera em 1929 e iniciara uma carreira de instantâneo sucesso em 1952 quando passou a integrar o quarteto do saxofonista e pianista norte-americano de jazz Gerry Mulligan (1927 – 1996), um dos criadores de um estilo mais sereno de jazz, rotulado como West coast jazz. O sucesso de Baker foi tamanho que logo ele estaria em cena, sem Mulligan, liderando o próprio quarteto. Entre 1953 e 1956, Baker fez gravações que consolidaram o estilo íntimo e pessoal do cantor e trompetista em escala mundial, fazendo um jazz tão cool quanto aconchegante.

Não é de admirar que, entre esses registros fonográficos, Baker tenha gravado várias músicas incluídas por Nico Rezende no roteiro do show gravado ao vivo em 5 de junho de 2016 no teatro do Centro de Artes UFF, na cidade fluminense de Niterói (RJ), em apresentação feita dentro da programação do Tudo Blues Festival, produzido sob a curadoria de Luiz Cláudio Carvalho. É que Chet Baker também encantou Nico Rezende desde que o artista paulistano conheceu o vasto mundo da música. “Chet Baker é uma referência que carrego desde a adolescência, período em que comecei a ouvir jazz. Sempre tive o sonho de montar um show cantando e tocando as músicas dele”, conta Nico.

O sonho começou a virar realidade quando Nico foi apresentado ao trompetista Guilherme Dias Gomes pelo guitarrista Fernando Clark. Dias Gomes também tinha o desejo de fazer um show tocando o repertório de Chet Baker – coincidência que uniu o cantor e o trompetista para viabilizar o projeto. Unidos por essa afinidade e pela mesma ideia, Nico e Dias Gomes se juntaram a Clark para realizar o show. Os três músicos então convidaram o contrabaixista Alex Rocha e o baterista André Tandeta para formar o quinteto do show que, três anos depois da estreia, gera o DVD Nico Rezende canta Chet Baker.

O sonho foi enfim realizado em 2014 quando o show começou a ser apresentado em várias cidades do Brasil, dois anos antes de ser registrado ao vivo, já em fase de maturação, em recital feito em traje de gala por Nico com o fantástico quarteto de músicos formado por Guilherme Dias Gomes (trompete), Fernando Clark (guitarra), contrabaixo (Alex Rocha) e André Tandeta (bateria). Ainda assim, o DVD Nico Rezende canta Chet Baker vai surpreender positivamente quem conhece somente o domínio que Nico tem na composição da música pop. Quando Baker saiu definitivamente de cena, caindo da janela de um quarto de hotel de Amsterdã em 13 de maio de 1988, Nico já era um astro pop no universo brasileiro.

Nico Rezende. Foto: You Tube
Nico Rezende. Foto: You Tube

Por coincidência, o DVD Nico Rezende canta Chet Baker chega ao mercado fonográfico neste ano de 2017, com distribuição da gravadora Fina Flor, 30 anos após o estouro do artista como cantor. Em 1987, Nico lançou o primeiro álbum solo, batizado com o nome do artista, e liderou as paradas do Brasil com “Esquece e vem”, balada que fizera em parceria com o compositor baiano Paulinho Lima. Era impossível ligar o rádio sem ouvir a sedutora canção, também propagada na trilha sonora da novela “O outro”, exibida pela TV Globo no horário das 20h naquele ano de 1987.

“Esquece e vem” foi o primeiro sucesso de Nico Rezende na voz do próprio autor da música. Contudo, em 1986, o Brasil inteiro cantou duas músicas do compositor sem ligar os nomes aos compositores destas duas parcerias de Nico com Paulinho Lima. “Perigo” tinha sido lançada em disco por Nico em compacto de 1985, mas estourou na voz da cantora Zizi Possi no ano seguinte. O mesmo ano em que Ritchie também atingiu o topo das paradas nacionais com “Transas”, outro certeiro petardo pop de Nico com Paulinho Lima.

Nessa fase de fama nacional, somente o público mais antenado sabia que estava diante de um artista completo, que mostrava no trato com a canção pop a mesma maestria com que canta e toca jazz neste segundo registro audiovisual de show da obra do cantor (o primeiro DVD, “Nico Rezende & Convidados”, foi lançado em 2010). É que Nico iniciara a carreira tocando em orquestras, antes de ser admitido na banda de Ritchie na função de tecladista.

Trinta anos, oito álbuns autorais e um DVD depois, o versátil cantor, compositor, músico e arranjador mostra em Nico Rezende canta Chet Baker por que foi convidado para produzir o primeiro álbum solo de Cazuza (1958 – 1990), gravado e lançado em 1985, e por que os maiores nomes da música brasileira (Roberto Carlos, Erasmo Carlos, Gal Costa, Lulu Santos e Marina Lima, entre outros) já requisitaram os serviços de Nico como arranjador. Marina, cabe lembrar, gravou e propagou em 1987 “Pseudo-blues”, música composta por Nico com o poeta Jorge Salomão e também gravada por Nico naquele ano de 1987, no primeiro álbum solo do cantor.

Como mostra o DVD “Nico Rezende canta Chet Baker”, o artista e o quarteto virtuoso do show criam música na hora, de improviso, como manda a lei do jazz. Quem faz na hora é craque. O que ajuda a explicar a consagração de Nico Rezende como compositor e produtor musical na área publicitária, segmento no qual conquistou prêmios relevantes como o Leão de Bronze (recebido em escala mundial no Festival de Cannes) e o Prêmio Colunistas Brasil (de prestígio nacional). Tudo efeito do ótimo trabalho produzido por Nico na produtora de áudio, Beatcarioca (StudioBeat), que mantém na cidade do Rio de Janeiro há cerca de 15 anos.

Dirigido com requinte por Diego do Valle, tendo a parte técnica ficado a cargo de Thiago Almeida, o DVD “Nico Rezende canta Chet Baker” deixa a impressão de ser a síntese da plural trajetória musical de Nico Rezende. Em cena, Nico canta 17 músicas do repertório de Chet Baker com voz cujo timbre remete ao canto do trompetista. Em que pesem as semelhanças, Nico jamais imita ou tenta clonar o canto de Baker. “Nico Rezende canta Chet Baker” é, em essência, um tributo ao grande cantor de voz pequena e ao trompetista de sopro exato, e não uma reprodução das sessões de gravação de Baker. Inclusive porque, em se tratando do jazz de Baker, a voz é um instrumento que se afina e que se integra com os demais instrumentos. Não foi por acaso, aliás, que João Gilberto, o papa da Bossa Nova, se deixou influenciar decisivamente pelo canto macio de Chet Baker.

A voz de Nico Rezende, aliás, se revela perfeitamente modulada e aclimatada no estilo de Baker já na música que abre o roteiro, Day break (Ferdé Grofé, 1926, com letra posterior de Harold Adamson, 1942), tema introduzido em cena pelo magistral toque do trompete de Guilherme Dias Gomes. E também não é por acaso que este músico está posicionado ao centro do palco. Afinal, Dias Gomes toca o instrumento que deu fama a Baker. Nico Rezende é o protagonista absoluto do show como cantor. Contudo, como pianista do quinteto, é como se Nico atuasse no (também fundamental) papel que, nas apresentações de Baker, coube quase sempre a Russ Freeman (1926 – 2002), pianista norte-americano que transitava pelo cool jazz quando tocava no grupo de Baker, que o contratou ainda na década de 1950, quando o trompetista começou a liderar o próprio quarteto, sem Gerry Mulligan.

Na sequência, a lembrança de But not for me (George Gershwin e Ira Gershwin, 1930) reitera a total interação entre Nico, Dias Gomes, Fernando Clark (guitarra), contrabaixo (Alex Rocha) e André Tandeta (bateria). Sintonia que faz com que o quinteto improvise sem jogar nota fora e sem excessos, como convém a um tributo a Chet Baker, que gravou a música But not for me no antológico álbum Chet Baker sings (Pacific Records, 1954), de cujo repertório Nico extraiu grande parte das músicas do roteiro do show eternizado no DVD Nico Rezende canta Chet Baker.

Como Baker cantava e tocava de forma mais íntima, na contramão do estilo esfuziante do bebop (corrente do jazz que estava no auge durante o apogeu do trompetista), era natural que o repertório do artista contivesse muitas baladas do quilate de I fall in love too easily (Jule Styne e Sammy Cahn, 1944). Tais canções ajudam a criar o adequado clima ameno que caracterizava o som de Baker. Nesse sentido, Nico Rezende e grupo são absolutamente fiéis ao estilo do artista que reverenciam no DVD. I fall in love too easily é da mesma dupla de compositores,  Jule Styne (1905 – 1994) e Sammy Cahn (1913 – 1993), que criou outra pérola da canção norte-americana, Time after time (1946), balada cantada por Nico após o artista apresentar a banda ao atento e embevecido público que lotava o teatro do Centro de Artes UFF na noite da apresentação do show no Tudo blues festival. Nessa apresentação, o vocalista e pianista do quinteto ressalta a origem niteroiense do contrabaixista Alex Rocha, nascido na mesma cidade onde o show Nico Rezende canta Chet Baker foi captado para a posteridade.

Entre uma e outra balada da lavra refinada de Styne e Cahn, Nico e quarteto tocam “I remember you” (Victor Schertzinger e Johnny Mercer, 1941), tema de maior suingue em que fica evidente o apurado senso rítmico da banda – reiterado no bis quando o quinteto toca “Do it the hard way” (Richard Rodgers e Lorenz Hart, 1940). Por mais que as baladas deem tom mais pop romântico ao repertório, sem perda da sofisticação, o DVD Nico Rezende canta Chet Baker exibe um show de jazz. E é jazz da melhor estirpe o que Nico e o quarteto fazem quando tocam “Just friends” (John Klenner e Sam Lewis, 1931), número em que Nico Rezende improvisa ao piano, livre e com domínio do idioma do jazz, e em que fica transparente a sintonia entre o baixo acústico de Alex Rocha e a guitarra de Fernando Clark.

“Just friends” faz parte do repertório de outro álbum referencial de Chet Baker. Trata-se de Chet Baker sings and plays (Pacific Jazz), gravado e lançado em 1955 na sequência da aclamação do álbum anterior de 1954 Chet Baker sings. Com os cancioneiros emblemáticos destes dois discos, representantes do apogeu artístico de Baker, Nico Rezende montou quase todo o roteiro do show em que celebra a arte do cantor e trompetista de grande beleza física (a ponto de ter chamado a atenção de Hollywood para atuar no cinema) progressivamente diluída com a adesão de Baker às drogas pesadas.

É do repertório do álbum Chet Baker sings and plays que Nico pescou a pérola jazzística Let’s get lost (Jimmy McHugh e Frank Loesser, 1943), número basicamente instrumental, ainda que o canto esteja presente como um elemento que se harmoniza com os toques dos músicos. Nessa música, os músicos transitam livre por caminhos inexplorados, mas ninguém se perde, tamanha a sintonia e cumplicidade que pautam a banda. Do mesmo álbum de 1955, o quinteto toca You don’t know what love is (Gene de Paul e Don Raye, 1941) com a mesma interação.

Nico Rezende. Foto: You Tube
Nico Rezende. Foto: You Tube

Uma característica notável do show reproduzido no DVD Nico Rezende canta Chet Baker é a coesão e a unidade da apresentação capturada pelas câmeras operadas por Luisa Saví, Yuri Carvalho, Sérgio Carvalho e pelos diretores Diego do Valle e Thiago Almeida. É jazz e, como tal, há criação feita livremente no palco, mas o fino acabamento instrumental e vocal se repete ao longo de músicas como There will never be another you (Harry Warren e Mack Gordon, 1942), Long ago (And far away) (Jerome Kern e Ira Gershwin, 1944), My Buddy (Walter Donaldson e Gus Kahn, 1922) – número de interação com a plateia em que o ritmo é marcado pelo estalar dos dedos dos músicos e do público – e It’s always you (Jimmy Van Heusen e Johnny Burke, 1941), balada que reitera o clima sedutor do show.

A exuberante abordagem de That old feeling (Sammy Fein e Lew Brown, 1937) encerra o show. Mas é um falso gran finale, pois os músicos nem saem do palco e começam um farto bis, iniciado com uma das músicas eternamente associadas ao canto de Baker, My funny Valentine (Richard Rodgers e Lorenz Hart, 1937), número em que se nota a largura do contrabaixo de Alex Rocha. Se existe uma música identificada com o canto cool de Baker, esta música é My funny Valentine e, por isso mesmo, cabe ressaltar que Nico e o afiado quarteto criam a apropriada atmosfera íntima para a interpretação do standard norte-americano. Essa mesma atmosfera é recriada em As time goes by (Herman Hulfield, 1931), número que confirma o canto afinado de Nico Rezende como o fio condutor do show incrementado pelo sopro de Guilherme Dias Gomes, parceiro fundamental do cantor na idealização do projeto. Detalhe: Baker cantou o tema propagado no filme Casablanca (Estados Unidos, 1942) em sessões feitas em 1986, dois anos antes da morte do artista, e perpetuadas em disco lançado postumamente em 1990 com o título de As time goes by.

Ainda no bis, Nico Rezende faz a plateia entrar ainda mais no clima aconchegante da apresentação e incentiva o público a cantar os versos de You’d be so nice to come home to (Cole Porter, 1943). A resposta imediata do público confirma a sintonia reinante entre plateia e palco do Teatro do Centro Artes UFF na noite de 5 de junho de 2016.

Lançado três anos após a estreia nacional do show, o DVD Nico Rezende canta Chet Baker – editado, mixado e masterizado no Eco Som Studios – é o retrato da maturidade de um artista completo, que transita do pop ao jazz com a fluência e com a propriedade que somente os grandes músicos têm. Chet Baker ficaria honrado ao ouvir Nico Rezende cantar um irretocável repertório que, para muitos, estará sempre associado ao canto e ao toque revolucionário de Baker.

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