Festival de Parintins 2018: Caprichoso apresenta projeto de arena; veja desenho das alegorias

Desenhos das alegorias do Boi Caprichoso. Foto: Divulgação

O Boi Caprichoso apresentou nesta quarta-feira (27), em Parintins, o projeto ‘Boi de Arena 2018’ que defende o tema ‘Sabedoria Popular: Uma Revolução Ancestral’. Com a presença da diretoria, conselho de artes e itens, o bumbá explanou como será o desenvolvimento da temática nas três noites de festa. Confira abaixo o texto e imagens divulgadas pelo Caprichoso.

SABEDORIA POPULAR: UMA REVOLUÇÃO ANCESTRAL

O melhor do Brasil é o Brasileiro! É com a afirmação proferida por Câmara Cascudo que o boi-bumbá Caprichoso se reconhece no ethos da Sabedoria Popular. No momento histórico em que vivemos um profundo caos social e nos confrontamos numa crise ética e moral, onde a arte é questionada quanto necessidade intelectual e transformadora. Ataques não são exclusividades dos museus, galerias e performances urbanas, mas principalmente nas mais profundas manifestações do âmago popular, terreiros, carnavais e folguedos são renegados, proporcionando respostas daqueles que carregam nas mãos as cores, os fazeres e saberes de povos ancestrais.

Sabedoria, um desejo dos nossos sonhos, o conhecimento mais profundo que ultrapassa os limites da erudição, herança de muitos parentes que espalhados pelo mundo guerreiam entre si, na cobiça por riquezas e prósperos mananciais que potencializam a separação difundida por Gui Debord. Modelo de vida contrariadas pela Sabedoria Popular que nos ensina pela boca dos nossos avós contadores e cantadores, griôs e xamãs do tempo que somos um, um povo, uma só gente, frutos da mesma semente de cores e tons diferentes, mas entrelaçados e costurados, conectados desde a vinda na terra e inconscientemente ligados a ela, como mãe e provedora de toda vida que germina, cresce e floresce, assim nos ensina o grande chefe David Kopenawa.

Os encontros que teceram o homem amazônida e sua cultura hibrida co-relacionadas a natureza sazonal nos tornaram também uma unidade da floresta, somos movimento! Somos cíclicos como a várzea e a terra firme, e por termos várias origens pulsamos na diversidade de inúmeras manifestações, bagagens ancestrais dos muitos povos que se cruzaram nesse espaço de encantaria.

Já fomos Noçoken, Guajupiá e Mundurakânia, Vila bela da Imperatriz e hoje Parintins, somos berço mátrio dos filhos da terra, e assim como os Parintin, Parintintin, Munduruku e Sapopé, na recepção aos Tupinambá, recebemos outros povos, brancos que nos trouxeram a dor e pela cobiça nos impuseram novos deuses e práticas diferentes. Com eles, depois vieram negros viajantes, remadores escravizados ou cabanos e alforriados, japoneses na fuga da guerra, Judeus que construíram uma Amazônia Eretz, e por fim, nordestinos que nos presentearam como o boi, brinquedo de santos, encantados e orixás.

Cada povo uma dor, cada encontro um amor, sorrisos, choros, saudades, ilusão ou prosperidade, encontros desejados ou não, confrontos e até mesmo estupros, nos fizeram o povo da floresta e assim povo de Parintins

Como homem-floresta que somos, a Samaumeira nos lembra na exuberância da sua presença que com os pés fincados na Terra Mãe Ancestral somos certos de nossa força e permanência. Temos tronco forte, e grande como o abraço do mundo, e foi bebendo do ventre de Gea que nossos galhos emanaram na busca dos anseios que acreditamos ser nossos.

E, como as painas que os ventos acalantam em seus braços buscamos bem mais que a forma! Não nos concluímos como espetáculo, buscamos bradar o novo, cantar o povo, pois somos ele. Nossos poetas oraram mais que as ladainhas dos santos e interpretaram as vozes da mata clamando por preservação.

Entenderam os sonhos e o pulsar dos tambores dos ancestrais tombados e retumbaram a existência, permanência e resistência dos povos indígenas. Gritamos por liberdade e pelos saberes de cada um, construímos uma revolução na vida do homem do Norte, onde mulheres e homens, velhos e crianças comungam dos mesmos sonhos e tornam seu canto uníssono na festa do boi-bumbá.

Assim, ensinamos os nossos filhos a consciência ancestral de saberes que curam as novas dores do homem contemporâneo. Pois, como Caetano Veloso dizia, um índio descera de uma estrela brilhante e cantara que o que parecia ser absurdo é obvio, e sempre esteve debaixo dos nossos pés! Somos uno, somos parte da terra, fomos folguedo e folclore e hoje cantamos arte, consciência e revolução!

Ericky da Silva Nakanome
Presidente do Conselho de Artes

O Boi de Arena 2018 vem dividido em três atos/noites.

1ª NOITE

Ancestralidade é raiz, é herança, é continuidade, é união, é testemunho. Tal qual uma árvore com raízes profundas, a ancestralidade traz a força do presente que busca substrato nas origens e referências de um passado, propagando um início, se adaptando a transformações sem, contudo, negar suas origens. Somos todos um bebemos da mesma fonte, o saber popular.

Somos o caminhar permanente entre passado e presente, e a salvaguarda desse saber. Somos resultados de vários processos de passagem de tempo, que nos transforma sem nos distanciar de nós mesmos.

Compreendemos essa origem, reverberamos esses saberes no respeito pela diferença, no reconhecimento dos valores individuais de cada um, na compreensão da dinâmica natural da vida e das culturas. Esses são os princípios da nossa revolução: identidade, respeito, justiça. Nossa reverência a este saber representativo e cerimonial de todas as culturas ancestrais. O pulsar da vida, a consciência da ancestralidade, o pulsar da revolução ancestral inicia de fato a apresentação do Boi-Bumbá Caprichoso.

O nosso ponto de partida pelas veredas ancestrais do saber popular, não poderia ser outro, senão, o solo da fecundidade, onde será parido o Ethos, embrionário que mais tarde definirá o Amalgama Mestiço da Sabedoria Popular Parintinense.

O congá sagrado das principais deidades míticas da humanidade é o cenário ancestral, onde Amaterasu (deusa da fertilidade para os orientais), Hera (deusa da família para os ocidentais), Ráume (deusa da fecundidade para os povos do Hawai) e Iemanjá (mãe das mães para os africanos), tornam-se unas em Ceucy, a índia virginal, a estrela-mulher, que fecunda Jurupari, o mensageiro ancestral do espetáculo Sabedoria Popular: Uma Revolução Ancestral. Estas mães míticas, presentes em culturas distintas, simbolizam para o Boi Caprichoso, as sentinelas da continuidade da caminhada humana, reverberando na alma do povo, a força de prosseguir se reinventando nos saberes ancestrais do povo.

A sociodiversidade amazônica tem nos saberes ancestrais dos sábios pajés, dos antigos griôs libertos e das crenças cristãs, o amálgama maternal da sincrética sabedoria ancestral do “Caboclo Curador”, misto de mistérios e dons sobrenaturais que transcendem os limites da ciência e da razão. O profundo conhecimento do poder milagroso das muitas ervas medicinais, a cura das doenças do corpo e da alma, a íntima ligação entre os mistérios do mundo terreno e o mundo metafísico, são dons natos do caboclo curador.

É comum, encontrarmos filas de espera á porta do pitoresco barracão de cura, ali será recomendado remédio certo para a dor que maltrata o corpo, para a desmentidura que incomoda as mãos ou a oração certa para livrar o curumim do quebranto que olho riscou, são esses saberes ancestrais, que imortalizaram esses caboclos como “seres de luz”, médicos da floresta ,anjos a serviço da vida, detentores de uma sabedoria que se costura através das gerações, acalentando a sobrevivência neste continente, esquecido pelas brisas que irradiam cidadania em nosso país. Viva o saber ancestral dos caboclos curadores, Viva “Waldir Viana”, Viva “Seo Machado”, Viva “Seo Torquato”, sábios curadores imortalizados na história parintinense.

Ao chegarem ao alto rio negro no auge do período colonial, os catequistas cristãos, encontraram povos indígenas, que tinham Yurupari, como um ente divinizado, que havia imposto o patriarcado, como forma de governança das aldeias e legislado uma série de leis e advertências que criavam em torno do grande tuxaua, uma aura divinal gloriosa. Toda essa reputação de respeito e poder, era um obstáculo para o florescimento da ideologia cristã.

Algo precisaria ser feito… Foi então que, ardilosamente, a catequese a ser ensinada nos “sermões”, passou a proliferar com cunho de verdade absoluta, que jurupari, era a encarnação do mal e quem ousasse seguir seus preceitos, teria sua alma aprisionada durante o sono, tais ensinamentos, espalharam-se por toda região causando o pavor e medo entre os povos Aruak, costurando para sempre, a ideia de que o legislador e redentor dos Aruaks, era o próprio demônio, o terror das noites, vestido em carapaças horrendas, justiceiro que chegaria nas redes dos índios e invadiria o seu sono e em meio a pesadelos, cerraria-lhe os olhos com a “areia da escuridão”, arrancariam lhes a língua, fazendo o corpo perecer suprimido pela parede de ossos. Quem não quisesse sentir a ira do maldito jurupari, teria que abandona-lo e converter-se ao rebanho de um novo deus protetor. Assim, mais um ancestral sagrado, foi assassinado na memória dos povos tradicionais.

Como nos ensina Barbosa Rodrigues, no clássico “Poranduba amazonense”, Yurupari, não é a figura do demônio, como comumente podemos ver nos registros das literaturas mais populares, “Yurupari do norte, Anhangá do sul, nada tem, pois, de comum com aquele que deu a adão o fruto da árvore do bem e do mal; Yurupari não é diabo, e sim o querem que seja, deve-se ao fanatismo dos pregadores da fé…” (Rodrigues, 2017)

As cerimônias instituídas por Yurupari aconteciam no tempo escolhido pelo “kumo” o xamã Tariana” e marcavam a culminância solene dos repasses dos saberes ancestrais, que os jovens púberes, teriam que receber. Eram vedadas as mulheres. Aconteciam no pátio da apegaua-oca, “a casa dos homens”, os ensinamentos eram repassados pelo próprio Jurupari, embalados pelos cantos dos velhos baiarís, imprimindo na alma do iniciado a responsabilidade daquele mágico ritual. Aprendiam o ciclo certo para plantar, caçar, pescar; descobriam os segredos das máscaras macacaraua, da dança, dos cantos e da autoflagelação ritualística, esses segredos deveriam permanecer para sempre ocultos a outras pessoas, pois se fossem profanados o mundo cósmico Tariana entraria em desequilíbrio. Registra que em uma dessas cerimônias ritualísticas, “UAURI”, o primeiro Tariana a receber esses ensinamentos, em desobediência aos preceitos, cometeu o maior erro de sua vida, por desobediência traiu seu mestre e repassou as mulheres os segredos que jamais poderiam ser profanados. Raios e trovões dissiparam o silêncio na grande floresta e Yurupari, sabiamente, conclui que os segredos foram revelados, chamando Uauri, para um acerto de contas, na ocara da aldeia Tariana:

– Te levanta Uauri para ouvir tua sentença… Traidor selastes teu destino, eu não estou mais contigo, a minha face não irá mais sorrir pra ti… Teus olhos não verão outro amanhecer… O teu corpo despedaçado no fogo divino irá arder… Traidor terás o teu castigo. Do teu pó nascerão insetos, répteis e peçonhas… Os teus ossos flautas sagradas serão.

Então, Uauri, teve seu corpo transformado em pó e do pó, nasceram todos os insetos, repteis e peçonhas que a Amazônia conhece e dos seus ossos nasceram as flautas sagradas. Assim, os Tarianas legaram a sabedoria ancestral amazônica, estas tradições que perduram até os dias de hoje na memória dos povos tradicionais do Alto Rio Negro.

2ª NOITE

Sim, houve um encontro ou um embate! Perdemos, adaptamos, tivemos que morrer para renascer. A cada dia uma conquista, novos desafios. Sob a ótica dos grupos culturais dominados, enfrentamos os monstros do imaginário europeu, que significavam o desconhecido, mas também representavam o preconceito e falta de alteridade em relação aos grupos humanos encontrados nas novas terras descobertas. Os monstros que chegam nas barcas dos colonizadores, caravelas, bergantins, tanto faz! Todos vieram impregnados de superstições, de medo, pavor, representação desse imaginário alimentado pelas teorias religiosas da Igreja Católica. É o pesadelo dos navegantes que aporta em nossas terras, enfrentado pelos indígenas da nação Tupi, maioria no ato da chegada dos colonizadores, que por sua vez não reconhecem a autoridade dos recém-chegados, e por fim, é o pesadelo dos cativos agrilhoados nos porões dos navios tumbeiros, peças para toda a mão de obra. Somos resultado desse encontro, um pouco de tudo, conflito de etnias, nesta noite, como diz os versos do poeta caboclo, “enquanto não se define qual a minha condição, faço do canto uma raça, do azul e branco a bandeira e dessa ilha minha nação”.

A partir de 1827, a história da Amazônia vivenciou “a febre da borracha” provocada para fomentar a recém-descoberta indústria de vulcanização, gerando um período marcado pela chegada de centenas de nordestinos atraídos pela ilusão da seringa, que juntos a índios destribalizados, negros alforriados e colonos locais, deram origem ao tipo humano: “O Caboclo Seringueiro”, protagonista de um sistema de exploração aviltante, cujo palco era o “seringal”, comunidade humana, econômica e social de trabalho onde se praticava o ofício de corte da seringueira, sangria, coleta e defumação. Nas rédeas de dominação estavam os seringalistas, empresários que lucravam com a produção, mantendo nos seringais “barracões”, onde eram vendidos a preços exorbitantes, todos os produtos necessários para a sobrevivência dos seringueiros, fazendo assim nascer um sistema de semiescravidão, no meio da floresta. “Geograficamente nascia assim, uma nova Amazônia, baseada na seca e na hevea, e na conjunção de duas linhas: a de maior flagelo e sofrimento – o sertão – e a de mais resistência e atração – a floresta”. (BENCHIMOL, Samuel. Amazônia, formação social e cultural, 2009:153-154).

Neste cenário de dominadores e dominados, o “Teatro Amazonas” é o símbolo vivo, de um período de ostentação econômica, edificado sob as lágrimas, força, suor, sangue e flagelo de milhares de caboclos seringueiros semi-escravizados num “apartheid amazônico provinciano”. Além de esperança e saudade, os nordestinos trouxeram em seus trapos e andrajos as sementes da multidiversidade cultural de suas terras pátrias, que germinaram o “abrasileiramento da Amazônia”, retratado em novos hábitos, costumes, falas, danças, canções, folclore e lendas, que hoje formam a nossa identidade cultural.

No ano em que o boi-bumbá Caprichoso festeja a ancestralidade como ponto de partida para a revolução cultural e social do povo de Parintins, celebramos a exaltação folclórica Boi de Negro. Neste ato mostramos que seringueiros em sua maioria negra, trouxeram para Amazônia no período áureo da borracha muito mais que a força de trabalho explorada nos seringais amazônicos.Na bagagem destes homens vieram o Candomblé, trazido da África mãe e transfigurado na cultura brasileira resultando na Umbanda e no Catimbó dos terreiros caboclos. O bumba-meu-boi, matriz ancestral do boi-bumbá amazônico, se destaca neste momento como uma das principais heranças ligadas a economia da pecuária como força geradora do Brasil colônia.

Nas misturas culturais o encontro marcado pela exploração e estigmatizado pelo racismo teceu a força do sincretismo transformando orixás resignificados em santos católicos, como Xangô, em são João. Nessa trama reverenciamos os orixás que regem o ano de 2018 e o traços estéticos presentes na festa do boi-bumbá consagrando o boi Caprichoso, como o boi de negro, de nascedouro afro descendente como a rua Sá Peixoto do bairro da francesa, em Parintins e de nome herdado pelos quilombos da praça 14 em Manaus.

A tribo indígena Aimará, da etnia inca, habitante da Amazônia andina, perpetua em seu universo lendário a trágica versão de como nasceu a “Ipuna-Caá”, a maior flor dos rios e lagos amazônicos.

Ensina-nos a lenda, que toda a aldeia, assistia na frente do templo do Deus “Inti” a chegada do cortejo trazendo “Sissa” para celebrar o seu casamento com kitz, quando foram surpreendidos com o ressoar de cornetas anunciando a chegada de uma expedição espanhola, chefiada por Dom Peralta, o “cruel”. Admirados os Aimarás acreditaram que aqueles estranhos seres, eram enviados dos deuses e os receberam com toda hospitalidade e cortesia.

Ao avistar Sissa, trajando um belo ponche, D. Peralta, subitamente apaixona-se e num ato de fúria, brada: “La mujer es mi conquista de guerra, prenda e mate el hombre herege”. Os soldados seguindo a ordem de seu comandante aprisiona o jovem noivo. Sissa, em um ato de desespero, resolve embebedar suas unhas e lábios em jambi (veneno) e entrega-se a Dom peralta, em um ardente abraço e beijo letal. Não demorou o veneno fazer efeito e o cruel conquistador cai morto na ocara inca. Sissa liberta kitz e sabendo que também morreria envenenada o abraça e este resolve beija-la para morrer também. Mesmo depois de desfalecidos tem seus corpos presos em uma carruagem e arrastados pelos espanhóis por toda aldeia até a margem do vale de onde são atirados nas águas do rio Apurimac. Todos assistem os corpos mergulharem e submergirem abraçados e cheios de esperança. Os dois gritam “o nosso amor é maior que a morte”, em seguida desaparecem para sempre. Dias depois, naquele lugar, nasceu uma grande, perfumada, bela e desconhecida flor, os pajés admirados, afirmaram, é Sissa, agora *Ipuna-Caá, flor das águas, que ao final da tarde, serve de abrigo para o solitário pássaro Jaçanã, que todos atribuem ser kitz, o seu amado.

Os Yanomami mantém uma sagrada relação com a terra. Eles a denominam de “urihi” e acreditam que em seu interior vive a “xawara”, fumaça letal, que uma vez libertada provoca doenças e desastres naturais no plano terreno e no plano metafísico provoca a morte dos pajés e a consequente corrosão da abobada celestial podendo esta desabar sobre a terra. Segundo a sabedoria ancestral do pajé Yanomami, Davi Kopenawa, desde 1960 quando os “napês” (garimpeiros) chegaram às terras indígenas, em busca de ouro, cassiterita e nióbio, libertaram a fumaça demoníaca iniciando, assim, o lento genocídio do mundo Yanomami e a apocalíptica corrida do planeta rumo à destruição.

Na transcendência do sábio pajé, o Iecoana (o pó alucinógeno), o conduz a visão profética em agonia conclui “o Shabono Ancestral”. O rio Demini já não existe, perdeu sua cor e com a cor do cobre agoniza de dor. Os “napês” não param, eles estão possuídos pelo espírito do caititu, e estão comendo a urihi, em busca de ouro, criaturas metálicas andam sobre a floresta, devoram a terra, derrubam árvores, sangram tudo que veem pela frente, é o fim de haximu, é o fim do povo Yanomami, o céu vai desabar somente Omame, o nosso pai, poderá evitar o nosso fim.

3ª NOITE

Da tecitura ancestral, tecido de palha e cipó, nasceu o artista de Parintins, forjado nas várzeas da floresta ganhou asas dos deuses antigos e voou longe, levando ao Brasil a herança de nossos antepassados indígenas, negros Bantos, Nagôs e Yorubás, portugueses e espanhóis, japoneses e judeus a força de seus traços culturais.

A herança artística de matriz ancestral é moldada na geografia amazônica e na poética multicultural, presentes desde as incisões sagradas das cerâmicas Kunduri e tapajônica, das pirografias sateré e dos sfumatos pictóricos trazidos por Miguel de Pascale que estão até hoje presentes na cenografia do espetáculo do boi-bumbá. Festa que projetou ao mundo os anseios de um povo que transformou a brincadeira de boi em trincheira revolucionária na luta por mudanças sociais, tais como o grito de preservação inaugurado pelo boi Caprichoso no raiar da década de 90, pela força da resistência no festival de 88 com o tema “Rei Negro: tributo a liberdade”. Na trajetória azulada Ronaldo Barbosa revoluciona a toada de boi-bumbá inserindo sonoridades abertas ao novo tempo, além do formato operístico assinado por Simão Assayag, que transformou esse folguedo em opera amazônica.

Mas que desenvolver um espetáculo que desafie o isolamento do baixo Amazonas, o boi-bumbá Caprichoso configurou-se como expoente de cantos nativos que ressoam os sonhos do povo de Parintins. Clamando igualdade, respeito a diversidade, respeito aos idosos “guardiões dos saberes”, tolerância religiosa, o festival de Parintins tornou-se na cultura popular brasileira uma bandeira de luta, consciência e revolução!

Das mãos de muitas caboclas, os fios naturais da floresta, entrelaçam-se ao som de doces canções, ganhando formas, curvas, silhuetas tecidas seguindo uma sabedoria ancestral invisível, carregadas de energia que ao longo das gerações, materializam-se em peças artesanais primorosas que enfeitam as casas, as mesas, transportam alimentos, embalam nossos sonhos, imortalizando o artesanato feito pelas sábias mãos das nossas caboclas artesãs, gerado quase sempre num silêncio carregado de agradecimento a generosidade da floresta, por suas fibras, suas sementes, seus cipós que são transformadas em lindas peças artesanais… É esse saber, que em Parintins é o embrião maternal de uma sensibilidade artística, repassada de geração a geração, mantendo viva a tradição herdada dos nossos ancestrais, retratadas em redes, paneiros utilitários, peneiras, tipitis, abanos, panelas de barro e agora mais recentemente as biojóias, fazendo de muitos beiradões, as vitrines artística das artesãs amazônicas.

Nas noites enluaradas de agosto, os amazônidas costumeiramente reúnem-se para divertirem-se nos “baile dos barracões”, ocasiões festivas onde o espírito de comunhão comunitária é reavivado, as caboclas chegam de diversas partes dos beiradões, com suas coloridas e brejeiras roupas, exalando o inebriante perfume do “Patchouli”, tornando a noite, um prelúdio mágico para a vivência da “mística sedução do boto”. Vestindo seu traje de encanto, todo em linho branco, com seu enigmático chapéu na cabeça, surge o “boto romanceiro”, ávido para dançar e seduzir e conquistar nas madrugadas, as caboclas desavisadas.

De conversa mansa, postura sedutora e galanteadora, o “boto homem”, ao deixar as águas assovia, fazendo brotar uma aura de encantamento, demarcando o território e em seguida percorre o salão da festa, conversando, outrora dançando, como realizando a dança de conquista, para ao fim da madrugada escolher, aquela, que será convidada a cruzar o portal da encantaria, para conhecer como homem e animal, o senhor das águas, “o boto romanceiro”, numa extasiante viagem ao palácio, edificado no fundo das águas, adornado em cristais cintilantes, guarnecido e habitado por mulheres arraias, homens crustáceos e muitas outras criaturas encantadas. Dali, a cabocla encantada, voltará à superfície, marcada para sempre, como a mãe do filho do boto, destino desafiador, instigante, surreal muito presente no emaranhado de mistérios lendários amazônicos.

A sabedoria ancestral dos velhos pajés Makurap, dos vales do Guaporé e Rio Branco, no estado de Rondônia, que após inalarem o rapé de angico, ensinam que após a morte, a alma deixa o corpo, e inicia uma épica epopeia rumo a maloca “Dowari”, a morada dos mortos.

É noite na aldeia Makurap, no plano terreno os parentes, em danças e orações, na força de um só pensamento, ao sepultarem seus mortos em covas de chamas ardentes, clamam que os espíritos da bravura acompanhem a alma do falecido guerreiro rumo ao dowari. No mundo sobrenatural a alma do guerreiro morto, encontra a djapé, o caminho dos mortos, por onde terá que passar por inúmeros perigos, para encontrar o “botxato: a cobra de fogo”, a ponte que liga o mundo dos vivos ao mundo dos mortos, lá avistará as ferozes criaturas, terá que enfrentar as aves devoradoras, as aranhas venenosas e seus casulos amedrontadores, as feras de ossos rastejantes, as centopeias assassinas horrendas que tentarão aprisiona-lo para sempre. Se com sabedoria, valentia e coragem conseguir cruzar o caminho dos mortos, a alma chegará ao dowari, e será consagrado para eternidade pelo espírito do primeiro pajé, como um “ser de luz”.

Fonte: Revista Oficial 2018 / Conselho de Arte / Portal de Parintins

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