O risco do fim da ala de compositores e o samba de escritório

Cavaquinho. Foto: Divulgação

Cavaquinho. Foto: Divulgação

Desculpem, leitores, minha longa ausência deste espaço. Um livro, um Carnaval, um CD e muito trabalho se interpuseram entre nós. Continuo sem tempo, mas mesmo assim não posso resistir à realidade à minha volta, que me provoca a clamar.

É sabido que, de tudo que uma escola de samba tem a oferecer a seus admiradores, é o samba-enredo o que a mim em particular mais encanta. Foram os lindos sambas de Silas de Oliveira que me despertaram a atenção e me atraíram para esse encantador universo das escolas de samba. O samba-enredo não é uma composição qualquer: ela é encomendada a compositores de uma ala que se agrupam livremente em parcerias para o desafio de transformar em poesia e melodia o enredo que será desenvolvido plasticamente por um profissional.

Assim tem sido, desde sempre ou desde muitos anos atrás. Pelo menos desde a década de 1960, creio, a disputa de sambas no âmbito das agremiações foi uma constante. Naquela época, o ingresso numa ala de compositores exigia do postulante uma espécie de vestibular, na maioria das vezes, a criação de um samba, ali na hora, em geral exaltando a escola. Mas não era só isso: deveria frequentar a escola por um período de dois ou três anos, filiado à ala, até ter o direito de participar da disputa.

Muita coisa esquisita aconteceu de lá pra cá. As alas se abriram a quem quisesse concorrer e já ninguém se choca mais quando gente que não tem participação na vida da escola inscreve samba. No entanto, na década de 1970, causou escândalo a vitória da parceria Evaldo Gouveia e Jair Amorim em disputas de samba-enredo da tradicional Portela.

“Hoje está tudo mudado”, como cantou um dia a Caprichosos de Pilares. Na Tradição, na época de seu surgimento, não havia ala de compositores estruturada e por um curto período, entre 1985 e 1989, os sambas-enredo foram encomendados a João Nogueira e Paulo César Pinheiro. Depois tudo entrou nos eixos: ala estruturada, parcerias, disputa…

Esse rito tem seus problemas e muito se tem falado e escrito a respeito de todas as distorções que o vêm desvirtuando ao longo das últimas décadas. Não vou repisar os mesmos assuntos, por demais conhecidos, porque urge passar a mais uma página.

A coisa veio acontecendo aos poucos, sorrateiramente, e, desavisados, achamos até interessante: em 2014, a Renascer de Jacarepaguá optou por dispensar a disputa e encomendar o samba a uma parceria: Cláudio Russo e Moacyr Luz. Quem não se lembra do refrão “O Rio de Janeiro é todo Lan”? Não me lembro de ter havido grita contra a decisão. Afinal, Cláudio Russo era compositor da casa, e dos bons. A receita deu certo e foi sendo repetida a cada ano, com sucesso. Elogios, boas notas, prêmios… Cláudio Russo e Moacyr são pessoas muito queridas, do bem, mas me penitencio de não ter percebido desde logo que essa atitude da diretoria era tremendamente injusta com os demais compositores da ala e muito lesiva à preservação desses ritos, que, como tantos outros, se somaram para construir, ao longo dos anos, essas grandes escolas de samba que tanto admiramos.

A fórmula foi sendo consagrada e não sei por que me choquei quando este ano se anuncia que a escola de samba Paraíso do Tuiuti, com o oportunismo que vem caracterizando seus últimos anos, acaba de contratar uma dupla de compositores a quem encomenda seu samba de 2018. Quem? Isso mesmo: Cláudio Russo e Moacyr Luz. E a Inocentes de Belford Roxo já se apressa a fazer sua encomenda. A Cláudio Russo e André Diniz.

Não há nada de pessoal no meu comentário, ou melhor, na minha revolta. Pelo contrário, é com tristeza que escrevo isso. Gosto dos três e os admiro. Talvez não tenham sequer consciência de que, com isso, está decretado o início do fim das alas de compositores.

Há algum tempo já se fala tímida e veladamente em “escritório” de fazer samba. Agora, o escritório já nem precisa entrar na disputa: se bobear, emite até nota fiscal.

Se olharmos pra trás, veremos que o que acontece hoje é resultado do descaso e do imediatismo das escolas. Hoje a ala é quase sempre comercial, nela desfila quem paga a roupa, dela participa qualquer um. Não há rodas de samba, festivais, composição de sambas de quadra, enfim, nenhuma atividade de criação. E como as disputas tomaram um caráter de espetacularização e uma oportunidade de lucro para as escolas, haja dinheiro! Os parceiros “da mala” se multiplicam e os verdadeiros sambistas se afastam, desiludidos, ou se vendem a esse esquema de podridão.

É lamentável que isso ocorra sob nossos olhos e que nosso silêncio seja conivente com o fim de mais um rito que fundamenta a escola de samba. Como formadores de opinião, é nosso dever, dever da crônica carnavalesca consciente, alertar para essas armadilhas, coisas que parecem boas e naturais, mas que vão pouco a pouco minando o que resta de uma manifestação cultural tão rica e pujante.

É espantoso que, em vez de tal atitude, se veja a crônica carnavalesca acelerar a monetarização da disputa, oferecendo notícia e divulgação aos sambas que pagarem serviços oferecidos abertamente, sem nenhum pudor, numa tabela. Por onde anda a mais rudimentar ética que distingue notícia e publicidade?

A decepção com essa atitude é maior por partir de um dos mais antigos e tradicionais veículos de informação carnavalesca, que dessa forma tem sua imagem arranhada. A independência é condição primordial para a credibilidade de um veículo de comunicação. Dói-me dizer isso, mas é por calar, por não querer desagradar nem magoar terceiros, que vamos engolindo absurdos e vendo nosso samba ser desrespeitado e ameaçado em sua grandiosa força.

Roda de samba. Foto: Reprodução de Internet
Roda de samba. Foto: Reprodução de Internet

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