Rachel Valença: Por que não somos mais tão amados?

Mestre Pablo no desfile de 2017. - Foto: Ana Cristina Victória/Divulgação.

Mestre Pablo no desfile de 2017. – Foto: Ana Cristina Victória/Divulgação.

Instalou-se nos últimos dias uma polêmica a respeito da redução da verba a ser repassada pela Prefeitura para as escolas de samba. Como todo mundo já escreveu sobre isso, não vou repetir aqui os mesmos argumentos que já foram apresentados a favor e contra as duas cidadelas em oposição. Mas leio, além dos excelentes artigos que defendem as posições de seus autores, os comentários dos leitores, nas redes sociais, concordando ou discordando deles. E me choca tremendamente o fato de as escolas de samba terem deixado de ter, nesta cidade, a popularidade de que desfrutaram um dia.

O desinteresse da sociedade pelas escolas de samba começa nas suas próprias quadras.

Fiquem tranquilos: não vou falar do meu tempo. Este já ficou pra trás há muito. Mas quero falar da geração das minhas filhas, de seus amigos e colegas que enchiam nossa casa e que formaram um grupo animado que até hoje se encontra, assiste aos desfiles, desfila, se reúne o ano todo para ver desfiles e cantar samba. Não eram exceção: nos colégios, mesmo os da Zona Sul, todo mundo tinha um time de futebol e uma escola de samba do coração. Os sambas tocavam no rádio, muito, a toda hora, desde antes do Natal. As compras na Saara tinham a trilha sonora dos sambas-enredo. Os dirigentes de escolas de samba eram figuras interessantes que, reunidos em mesas-redondas na TVE e na TV Manchete logo após o Carnaval para comentar o resultado, nos mantinham acordados até muito tarde, ouvindo suas discussões cheias de humor, alfinetadas e autenticidade.

Difícil imaginar que naquele momento um prefeito ousasse desmerecer o desfile das escolas: tenho a sensação de que a população se levantaria em defesa de algo que fazia parte de seu cotidiano. Hoje tudo ficou muito maior, mais bonito, mais organizado, mais “limpinho”. Mas será que é isso que as pessoas querem? A maioria da população elegeu um prefeito evangélico, um homem com postura bem clara e definida. Observo, sem surpresa, que a maioria da população está de acordo com uma definição de prioridades que coincide com o perfil do candidato.

Sem que a maioria tenha se dado conta, o conjunto da sociedade já vinha se afastando das escolas de samba bem antes de Crivella.

Ao tentar reverter isto e protestar contra a medida, os dirigentes atuais convocam o povo a defender suas escolas de samba. Mas, pera aí: é agora que se lembram do povo? Do povo que não tem aparelho de fax em casa nem dinheiro para comprar ingressos para o desfile? Do povo que fica fora das festas suntuosas que a entidade representativa das escolas do Grupo Especial promove? Do povo que só tem acesso à Cidade do Samba na qualidade de trabalhador informal, e ainda sujeito a calote?

O desinteresse da sociedade pelas escolas de samba começa nas suas próprias quadras, onde se ouve funk e outros ritmos similares, onde o ingresso é caro também, onde se vê todo tipo de injustiça, com pessoas que nunca frequentaram a escola recebendo sua fantasia, sua camisa, seu terno para desfilar enquanto do sambista se exige presença a todos os ensaios (e ainda assim pode ficar sem nada). O afastamento do povão vem de ser obrigado a ver pela TV a pista cheia de gente credenciada atrapalhando os sambistas, vem de ter a certeza de que o desfile a que assiste não custou nem a metade do dinheiro que a escola recebeu, que os ingressos do Setor 1, que deveriam ser para distribuição gratuita, foram vendidos.

O que merece nossa reflexão é esse divórcio entre o povo do Rio de Janeiro e suas escolas de samba.

Tudo que diz respeito às escolas de samba se tornou caro e difícil, nada é a preço popular: ganhar, faturar, lucrar são as únicas preocupações. Feijoada em quadra de escola de samba é programa para rico: ingresso, feijoada, mesa, cerveja, tudo caro. Final de samba enredo tem ingresso de preço mais alto, a mesa sobe de valor, tudo proibitivo. Os compositores, então, vão à ruína com os altos gastos que são obrigados a fazer.

Por tudo isso, vamos ouvindo frases como: “Eu era compositor, mas desisti de compor porque a disputa está muito cara”. “Eu era ritmista, mas larguei porque era muita exigência”. “Eu desfilava, mas cansei de ouvir grito de diretor de harmonia”. “Eu ia muito à quadra, mas hoje não tenho mais grana para isso”. “Eu era passista, mas tive de deixar porque os ensaios terminavam tarde e eu trabalho cedo”. Ou simplesmente: “Eu assistia ao desfile todo ano, mas deixei de ir porque é muito roubado”. Quando ouço frases como essas, sinto uma dor no coração. Porque, sem que a maioria tenha se dado conta, o conjunto da sociedade já vinha se afastando das escolas de samba bem antes de Crivella pensar em ser prefeito. Ao reduzir em 50% a subvenção destinada às escolas, ele não as torna menos amadas. É duro reconhecer que nós é que, ao longo do tempo, fomos cometendo sucessivos erros que resultaram no afastamento da sociedade, a ponto de hoje pouca gente se indignar com a redução da verba.

Mais do que esta disputa que de uma forma ou de outra se resolverá, o que merece nossa reflexão é esse divórcio entre o povo do Rio de Janeiro e suas escolas de samba, que a disputa foi capaz de evidenciar dolorosamente.

Veja aqui mais sobre a polêmica da redução da subvenção

 

Comentários

 




    gl