A glória de Madureira e a ruína do Sambódromo

Este carnaval de 2017 foi um vendaval de emoções. Foi também um divisor de águas, entre situações díspares de tristeza e alegria, vergonha e espetáculo, descaso e celebração. Uma divisão em dois tempos para se escrever uma coluna.

Para lembrar de coisas boas, sobrevém a nós esse turbilhão de paixão em Madureira, que o colunista não tem como não mencionar. Os campeonatos simultâneos de Portela e Império Serrano devolveram não a dignidade – pois esta, as páginas da história e o poder de seus legados não permite subtrair -, mas a altivez e o pódio de vitória a duas das mais poderosas instituições culturais deste país. A Portela de dois Paulos – o Barros, muito falado, e o Menezes, que é digno de nota – foi a grande campeã do Grupo Especial. Há três anos uma verve polêmica apostava todas as fichas no fracasso da vinda do mais inventivo carnavalesco para uma das mais tradicionais escolas. Fui o primeiro a dizer que não teria a arrogância de achar que o gênio e a Majestade do Samba não fizeram sua reflexão antes de se casarem. Ano passado a Portela foi arrebatadora, e este ano ela arrebatou o campeonato. Emocionante, criativa e fiel a si mesma. Ousado, Paulo Barros prometeu molhar a avenida toda contando a história dos rios da humanidade, mesmo quando muitos acreditavam, que ano passado, a água atrapalhou o campeonato da Águia. Pois Barros voltou com seus rios, molhou tudo mais ainda…e inundou o sambódromo com a magia da Portela! Uma vitória linda, consagradora!

Assim como o Império Serrano, confinado no grupo de aceso há tantos anos, pensando em se reinventar esteticamente, apostando no jovem talento de Marcus Ferreira para colorir com leveza e bom gosto a poesia de Manoel de Barros. O Reizinho de Madureira veio com um samba contagiante, a força de sua bateria Sinfônica do Samba e a emoção de sua gente celebrar seu lugar devido no ano de seu septuagésimo aniversário. Seu desfile tecnicamente perfeito superou as desventuras no lindo desfile da rival Unidos de Padre Miguel, e a Coroa Imperial voltou dignamente para a elite a que pertence.

É bom lembrar que essas duas escolas, antes de se sagrarem campeãs, tiveram dores e violência em sua caminhada. Na Portela, o assassinato do patrono Marcos Falcon em setembro do ano passado. No Império, o assalto à quadra culminando na morte de um segurança por espancamento. As duas campeãs se reenergizaram com as vitórias. Mas foi um sinal; o carnaval 2017 parecia mesmo destinado a fatalidades.

O desfile da Unidos de Padre Miguel comoveu a Sapucaí quando a porta-bandeira Jessica desabou, de frente para os jurados, ao torcer o joelho. Urrando de dor, teve de abandonar o desfile. No dia seguinte, porém, a sucessão de erros a que a avenida está exposta veio à tona. Uma avenida lotada de gente trabalhando e uma centena de “camiseiros&crachazeiros” enfeitando a pista assistiu a um carro alegórico desgovernado da Paraiso do Tuiuti atingir várias pessoas, em duas manobras fatais, ferindo mais de 20 pessoas. Gente em estado grave, gente ameaçada de amputação. As declarações oficiais sempre inúteis e sem fundamento: como podem os dirigentes culpar “o excesso de gente na rua” se são eles os únicos poderosos que credenciam todo mundo que não é imprensa e não está ali a trabalho? Como podem transferir a responsabilidade de uma falta de gestão de riscos decente na avenida para os que estão na pista, diante de um carro gigante que invadiu calçadas e grades como um Titanic que se choca contra um iceberg?! É muita hipocrisia!

No dia seguinte, nova tragédia: o desabamento de um teto de alegoria da Unidos da Tijuca com mais pessoas feridas. Dois dias seguidos com espetáculos de terror para o público do setor 1.

O Sambódromo há muito é uma bomba-relógio. O que aconteceu “tudo de uma vez” em 2017 poderia ter acontecido todos os ultimos anos. Simplesmente porque não existem processos, não existem normas-padrão: cada um se defende como pode e não há regulamentação de nada. Os carros a cada ano mais gigantes passam sempre ao lado de quem trabalha na pista, já que as frisas que já foram área técnica de imprensa viraram áreas e camarotes comerciais, jogando todo mundo para a área de risco onde os carros passam. As saídas do Sambódromo são todas estreitas, corredores de grades de ferro que afunilam e imprensam quem passa. Um navio negreiro desmontável. O acesso de trabalho ao setor 1, inclusive, é de um estreitamento gritante: impossível uma rota de fuga em caso de perigo.

Passagens estreitas de acesso à pista no Setor 1 – Foto: Jeanine Gall

As alegorias saem dos barracões assinadas por engenheiros. O CREA já declarou que quer saber se esses engenheiros finalizam o trabalho ou só “carimbam” as avaliações. As alegorias são testadas por especialistas contratados pelas próprias escolas. O Inmetro agora quer instaurar um processo de verificação e testagem de todas as alegorias para uma liberação padronizada.

E motorista de carro alegórico?! Numa cidade onde há blitz de Lei Seca em todo canto, qual o processo para fiscalizar o estado dos motoristas desses carros, em dias em que sabidamente tanta gente bebe e muita gente bebe muito antes de desfilar?!

O espetáculo de terror e descaso começa na inoperância dos órgãos públicos, que esperaram a tragédia anunciada para tomarem providência, e nos próprios gestores do carnaval, que obviamente negligenciam os cuidados mínimos com a segurança das pessoas e, depois, emitem notas de lamúria e promessas (nem sempre cumpridas) de “prestação de socorro” aos envolvidos. Um humanismo de fachada. Que ainda serve de desculpa para, numa manobra hostil, rasgar o regulamento e proteger as escolas do rebaixamento. Em “respeito às vítimas”, como se os beneficiados não fossem os próprios cavalheiros e suas escolas.

O mundo do samba mudou depois deste carnaval! Redescobrimos a glória de Portela e Império Serrano para uma geração que só a conhecia pelos livros. E, infelizmente, caiu também a máscara de uma avenida de desfiles perigosa, ameaçadora e que requer, de fato, interdição e remodelamento de processos.

Para que não se venha, depois, consertar no tapetão o que a incompetência e a omissão ocasionaram a quem apenas queria assistir a um espetáculo dito “o maior da Terra”!

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