Expressionismo alemão ganha caprichada caixa de DVDs

Expressionismo. Foto: Divulgação

Expressionismo. Foto: Divulgação

Os cinéfilos mereciam! Após distribuidoras menos profissionais terem colocado no mercado alguns filmes expressionistas alemães sem muita preocupação com a qualidade, agora o selo Obras Primas lança uma caixa sobre o tema digna de qualquer colecionador. Com o nome “EXPRESSIONISMO ALEMÃO”, a caixa traz 3 DVDs contendo cinco clássicos deste importantíssimo momento do cinema mundial: Fausto, O Castelo Vogelöd, A Caixa de Pandora, A Morte Cansada e, claro, O Gabinete do Dr. Caligari. Todos em versões caprichosamente restauradas pelo Instituto Murnau. Completa o lançamento o imperdível documentário De Caligari a Hitler, inédito no circuito brasileiro, que traça um completo panorama dos primeiros anos da história do cinema alemão.

Fausto (Faust: Eine deutsche Volkssage, Faust, 1926, 107 min)
Direção: Friedrich Wilhelm Murnau. Elenco Principal: Gösta Ekman, Emil Jannings, Camilla Horn.

Após o sucesso de A Última Gargalhada, lançado em 1924, Murnau obteve carta branca dos produtores para realizar este seu Fausto sem limitações de orçamento. Valeu a pena. Com muito vigor, desenho de produção (ainda) assustador, fotografia preciosa e efeitos especiais de grande impacto para a época, o filme mostra a briga de Deus contra o Diabo, tendo o cientista Fausto como pivô. Fausto tem uma alma tão boa e pura que é utilizado por Mefistófeles como instrumento de uma aposta: se o Mal conseguir corromper a bondade do cientista, Deus lhe entregaria o comando da Terra. Deus aceita o desafio, fazendo com que Mefistófeles utilize todo o seu arsenal de maldades e artimanhas para corromper Fausto.

Curiosamente, os créditos iniciais preferem registrar o filme como “um conto clássico alemão” a creditar a famosa peça de Goethe como fonte primeira de sua inspiração.

O Castelo Vogelöd (Schloß Vogelöd, 1921, 81 min). Direção: Friedrich Wilhelm Murnau. Elenco Principal: Arnold Korff, Lulu Kyser-Korff, Lothar Mehnert.

O castelo Vogelöd do título é na verdade mais uma grande mansão que propriamente um castelo. Mas tudo bem. É ali que, durante uma festa, um grupo de aristocratas se sente extremamente incomodado com a presença do Conde Johann Oetsch, que apareceu sem ser convidado. O motivo do incômodo é o fato do conde ser o principal suspeito de, três anos antes, ter assinado o marido de uma importante baronesa, que também está sendo esperada na mesma festa. O confronto da viúva com o assassino de seu marido poderia ser desastroso para ao andamento de uma reunião tão chique e importante.

Ainda que o tema da morte esteja bastante presente, O Castelo Vogelöd se afasta um pouco dos temas e da estética típicos do Expressionismo Alemão, constituindo-se mais num suspense (de ótima qualidade, é verdade) que propriamente num filme de terror.

Uma curiosidade: como a história que originou o filme estava sendo publicada em capítulos pelo periódico alemão “Berliner Illustrierten”, os produtores do filme conseguiram rodá-lo em apenas 16 dias e ainda lançá-lo nos cinemas antes mesmo que o jornal publicasse o desfecho da trama.

A Caixa de Pandora (Die Büchse der Pandora, Pandora’s Box, 1929, 131 min). Direção: Georg Wilhelm Pabst. Elenco Principal: Louise Brooks, Fritz Kortner, Francis Lederer.

Mais que um filme, “A Caixa de Pandora” foi uma revolução de costumes em sua época. Exalando modernidade, o longa é ousado e libertário em sua concepção de retratar uma protagonista feliz e bem resolvida com seus parceiros amorosos e sexuais, sem vilanizar a homossexualidade, muito menos julgar o desprendimento de Lulu (a norte-americana Louise Brooks, que dizia se sentir bem melhor fazendo filmes na Europa), a amante de Ludwig (Fritz Kortner) um sério e importante editor de jornal. Tudo vai bem até o momento em que o “respeitável” Ludwig precisa se livrar de Lulu para se casar com uma mulher “socialmente aceita”. E tudo desmorona. Um clássico do comportamento hipócrita da sociedade humana.

A Morte Cansada (Der müde Tod, Destiny, 1921, 98 min.)
Direção: Fritz Lang. Elenco Principal: Lil Dagover, Walter Janssen, Bernhard Goetzke.

O sempre versátil Fritz Lang dá um show de morbidez combinada com humor sarcástico ao contar a história da própria Morte, que anda cansada de provocar sofrimentos pelo mundo. Ela decide então dar uma nova chance a um jovem apaixonado que acaba de morrer: se a noiva do rapaz conseguir salvar uma das próximas vidas que a Morte precisa ceifar, ela lhe restituirá o ser amado. O roteiro é do próprio Lang em parceria com sua esposa, Thea von Harbou, que anos mais tarde escreveria o clássico Metrópolis, que também seria dirigido pelo marido.

O Gabinete do Dr. Caligari (Das Cabinet des Dr. Caligari, The Cabinet of Dr. Caligari, 1920, 77 min). Direção: Robert Wiene. Elenco Principal: Werner Krauss, Conrad Veidt, Friedrich Feher.

Verdadeira viagem a um universo louco e distorcido de formas e sombras, o filme mostra um hipnotizador e um sonâmbulo que chegam a um pequeno vilarejo e logo se tornam suspeitos dos assassinatos que passam a acontecer no lugar. Inquietante e perturbador, O Gabinete do Dr. Caligari mostra cenários grosseira e propositalmente pintados fora de perspectiva, móveis que não se encaixam na anatomia humana, um forte jogo de luzes e sombras, e uma aberta discussão sobre sanidade e loucura, transformando-se numa obra obrigatória nos cursos de cinema e em todas as listas dos filmes mais importantes do século. Ainda que Wiene nunca mais tenha dirigido nada de igual importância.

Um pouco de História

Vampiros, sombras, medo, morte… o gênero terror, um dos favoritos do grande público, é um dos mais antigos da história do cinema, e diferente do que se possa pensar, seu nascimento não ocorre nem na sombria Londres, nem na violenta Nova York, mas sim na sofrida Alemanha da época da I Guerra Mundial.

Entre 1913 e 1914, o cinema alemão produz uma trilogia que é considerada não apenas o pontapé inicial do gênero terror na história do cinema, como também a matriz deste estilo que se espalharia com muito sucesso por todo o mundo: Der Andere, Der Student von Prag e Der Golem fazem da Alemanha o berço dos filmes de terror.

Lançado em 13 de fevereiro de 1913, Der Andere, dirigido por Max Mack, conta a história de um respeitado advogado que se transforma, inconscientemente, num ladrão profissional, para depois tornar a se converter num homem de respeito. Percebe-se a influência dos clássicos O Duplo, que Dostoiévski publicou em 1846, ou mais proximamente de O Médico e o Monstro, escrito pelo escocês Robert Louis Stevenson em 1886.

Lançado seis meses depois de Der Andere, em agosto de 1913, Der Student von Prag é estrelado e codirigido (ao lado do dinamarquês Stellan Rye) por Paul Wegener, ator recorrente nas peças produzida por Reinhardt. Inspirada em Fausto, de Goethe, a trama fala de um jovem estudante que se apaixona por uma condessa, e faz um pacto com um misterioso mágico para conquistar o amor da moça.

Ainda enquanto filmava Der Student von Prag, em locações na cidade de Praga, Wegener toma contato com uma lenda judaica do século 16, segundo a qual um rabino havia construído um homem de argila que teria magicamente criado vida. Mas algo dá errado e o monstro deve ser destruído. Fascinado pela história, Wegener faz uma parceria com o austro-húngaro Henrik Galeen e ambos escrevem e dirigem, ainda em 1914, o filme Der Golem, baseado na lenda, e que seria lançado em janeiro de 1915, com o próprio Wegener no papel principal.

É em meio a esta efervescência criativa que em 28 de junho de 1914, em Sarajevo, um atentado dá início à primeira Grande Guerra, e a Alemanha está no olho do furacão do conflito. O impacto da Guerra é imediatamente sentido no país, que vê sua produção cinematográfica cair de 49 longas produzidos em 1913 para 29 logo no ano seguinte.

Porém, sendo a propaganda de maneira geral e o cinema em particular ferramentas indispensáveis para as estratégias de comunicação em tempos de guerra, os filmes não poderiam parar. Governo e estúdios cinematográficos alemães de grande importância se mobilizam para fundar, em 1917, a UFA – Universum Film Aktiengesellschaft, entidade criada com os objetivos de reduzir o impacto da destruição bélica sobre a indústria do cinema, tentar evitar ao máximo a perda de mercado, e valorizar o filme nacional como linguagem, negócio e informação. A iniciativa dá certo, com a produção não só se mantendo em plena atividade nas mais de 2.000 salas de exibição do país, como também batendo seus próprios recordes e contabilizando 117 longas lançados em 1917, e 211 no ano seguinte.

A assinatura do armistício, em 11 de novembro de 1918, põe fim a Guerra, mas o Tratado de Versalhes, em 29 de junho de 1919, dá início a um humilhante processo de depressão financeira, política e moral da Alemanha, que é apontada como a grande causadora do conflito, e obrigada a aceitar uma série de sanções. A profunda depressão que se abate sobre a Alemanha, em todos os sentidos, se faz sentir em seus filmes. Assim como já havia acontecido com a pintura alemã, o cinema também adere ao Expressionismo, corrente artística que prioriza a representação dos sentimentos do autor da obra, desprezando a simples descrição objetiva da realidade. Em outras palavras, expressa-se agora nas telas – sejam as de pintura, sejam as de cinema – o que a alma sente, e não o que os olhos veem. Diante de tanta depressão, não é por acaso que os filmes expressionistas alemães do pós-I guerra manifestam-se com uma marcada estilização da cenografia, luzes e personagens. Deliberadamente artificiais, os cenários são pintados de forma distorcida, fora de perspectiva. As angulações de câmera enfatizam o fantástico e o grotesco, o contraste de luzes e sombras torna-se mais forte, e as interpretações dos atores teatralmente histriônicas. Nos temas, loucuras, aberrações, pesadelos, enfim, o horror. O Expressionismo é a forma alemã de ver o mundo destruído.

A obra que inaugura e que se constitui num dos mais importantes símbolos do Expressionismo Alemão no cinema é O Gabinete do Dr. Caligari. O Expressionismo foi construído com o talento e o gênio criativo de alguns dos mais representativos cineastas do período, como os já citados Paul Wegener e Paul Leni, mais Fritz Lang, e F.W. Murnau, juntamente com o escritor Carl Mayer, os cameramen Karl Freund e Fritz Wagner, além dos desenhistas de produção Hermann Warm, Walter Rohrig, Robert Heruth e Otto Hunte.

Comentários

 




    gl