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O admirável Wilson das Neves

“Não sou velho. Velho é o mundo. Cheguei, ele estava aqui. Vou embora, ele vai ficar” (Wilson das Neves).

 

Ele era baterista, dos melhores, daqueles que não batem no instrumento, tocam. Ao cantar e compor carregou com ele seu suingue. Começou na década de 1950, no rádio, nas bandas de baile. Gabava-se, com razão, de ter tocado com um zilhão de artistas: Elizeth Cardoso, Elza Soares, Chico Buarque, Elis Regina, Ney Matogrosso, Roberto Carlos, Sarah Vaughan e outras feras. Dono de língua e cérebro afiados que produziram deliciosas frases de efeito. Imperiano, flamenguista e sambista, “pode me resumir assim”, certa vez ele me disse. Wilson das Neves era um homem espetacular, o mais carioca dos cariocas, admirável.

Tive a felicidade de conhecer pessoalmente o Das Neves. De conviver com ele por algumas horas, de encontrá-lo algumas vezes por aí. E ainda fui honrado com a sua participação no meu disco, o Baobá. Wilson das Neves cantou comigo o samba “De Piedade”, parceria com Tiago Rattes. E é sobre este encontro que quero escrever, pois creio que este fragmento ajude vocês a mensurarem o tamanho do ser humano Wilson das Neves.

Muitas maneiras existem de compor uma canção. Uma letra que sai junto com a melodia. Uma melodia que recebe letra posteriormente. Uma poesia que depois é musicada. Sozinho, a dois, a três. Tem de tudo. Particularmente, gosto de compor, estrategicamente, quando a coisa não surge espontaneamente, pensando em algum personagem, real ou imaginário. Como se aquela canção fosse encomenda de alguém. Foi o caso do samba “De Piedade” que surgiu a partir de um papo com o parceiro Tiago Rattes, na mesa do Bar Paraíso da Glória (Juiz de Fora/MG). Conversávamos sobre paixões, especialmente aquelas que desafiam as diferenças de idade entre o casal. Eis que Rattes soltou o verso de uma poesia sua: “Ela é de Piedade, mas não tem dó de mim”. Um gole de Brahma e retruquei: “Jurei que a trocava por uma caprichosa de Pilares. Ela sorriu. Zombou no fim”. Pedimos a conta e fui para casa seguir com a composição. Letra e melodia vieram juntinhas a partir da imagem de Wilson das Neves interpretando o samba. Um ídolo, uma inspiração o Das Neves.

Ao preparar e escolher o repertório do disco Baobá, “De Piedade” tornou-se titular absoluta na escalação. O tempo passou, tudo definido com o produtor Luis Filipe de Lima e iniciamos as gravações do disco na Barra da Tijuca/RJ. Na primeira sessão, fizemos as guias de vozes, de cavaquinho com Alceu Maia, percussões valendo com Marcelinho Moreira e Thiago da Serrinha. Na técnica, eu, Lucas Macedo (Tuta, nosso engenheiro de som) e Luis Filipe, muito mais que produtor, o babalorixá do Baobá. “Próximo cliente”, disse o De Lima, e chegou a vez do “De Piedade”. Entre cavaco, tantan e pandeiro contei a história da composição do samba ao diretor. Luis Filipe, atento à execução dos músicos, deu uma viradinha de cervical, fitou-me e do alto de sua placidez alentejana, mandou: “Ué, então vamos chamar o Das Neves para gravar!”. Dei um sorriso largo, mas logo percebi que não se tratava de uma bravata. Das Neves e De Lima são amigos de longa data, amigos de coisas da vida terrena e do sagrado. Semanas depois, recebi de Luís a notícia sobre o aceite do Das Neves em participar do Baobá. Explodi. Avisei de pronto ao parceiro Rattes que teríamos nosso samba gravado pelo orixá Wilson das Neves. O amigo e jornalista Hugo Sukman, no texto de apresentação do Baobá, bem resumiu o significado da participação de Das Neves no disco: “o que é, além de tudo, atestado de boa procedência, a consagração do compositor”. Ô Sorte!

Chegou a semana marcada para a gravação da voz de Wilson das Neves no Baobá. Recebi um telefonema de Luis Filipe que apresentou um problema: “Carlos, Das Neves está sem carro e precisa que alguém o leve ao estúdio para gravar e depois retorne com ele para sua casa”. De imediato, disse que assumiria a função de chouffer do Das Neves. Perderia esta chance? Peguei seu número de telefone e fiz a ligação para combinar a carona.

– Alô, Das Neves?

– Sim, senhor. Sem tirar, nem por.

– É Carlos Fernando. Na próxima quinta-feira, temos uma gravação e estou ligando para combinar de pegá-lo em sua casa.

– Gravação? De que?

– De um samba no meu disco, o Baobá.

– Baobá? Já gostei do nome.

– Sim. O senhor ouviu o samba?

– Pra que, meu filho? Eu já nasci preparado. É o disco do Luis Filipe, não é? Está tudo certo. É só pegar o velho em casa.

Peguei seu endereço e combinamos o horário.

Vinte de novembro de 2014, quinta-feira, Dia Nacional da Consciência Negra. Saí de Juiz de Fora às oito da manhã e batendo nove e quarenta e sete estava na porta do Das Neves, Ilha do Governador. Dei palmas e nada. Bis de palmas. Em vão. Frio na barriga. Três minutos depois aparece Wilson com cara de quem não dormiu, fez as gentilezas, abriu o portão e me pediu para aguardar no sofá da sala enquanto se arrumava. Fiquei ali uns vinte minutos. Respirei profundamente durante este tempo em busca de absorver tudo daquela atmosfera. Nas paredes, quadros com fotos, reportagens, flâmulas e, em destaque, a faixa de Presidente de Honra da Bateria do Império Serrano. Estava justamente admirando a faixa quando ele voltou e disse: “Esta aí é especial”. Um sorriso, dois segundos de lembranças e emendou: “Vamos?”.

Entramos no carro. Ele me pediu para fazer um caminho diferente, pois tinha que passar no jornaleiro do bairro para comprar o jornal do dia: “O jornal é o de menos, mas eu não posso passar um dia sem sacanear este tricolor, rapaz. Ainda mais hoje que o Flamengo ganhou”. Depois de uns cinco minutos de pilhagem mútua, seguimos, ele com a pergunta: “Você é flamenguista, logicamente?”. “Evidentemente!”, respondi. Gargalhadas de identificação. Mais uma paradinha, desta vez para comprar uma latinha de Brahma. E fomos Linha Vermelha, Linha Amarela, até o estúdio na Barra da Tijuca. Coloquei o samba pra ele ouvir, mas foram vinte e poucos minutos falando de Flamengo e contando histórias com Luis Filipe de Lima.

– Chegamos, Mestre.

– Meu filho, preciso tomar café. Nem deu tempo de fazer isso em casa. Um boteco, qualquer por aí. Tem?

Onde arrumar boteco na Barra?

Avistei uma loja de conveniência, posto de gasolina, e lá fomos. Coisas de Barra da Tijuca, a loja tinha um buffet da café da manhã. Das Neves pegou umas frutinhas, pouca coisa. Comeu. E na saída, outra Brahma.

Já no estúdio, abraços e papo curto com Luis Filipe. Partimos para a gravação e o homem mostrou que realmente nasceu pronto. Aprendeu o samba na hora e gravou num tom desfavorável para sua voz. Mandou ver. Do outro lado do vidro da sala, custava a acreditar que era real aquele momento.        Que suingue no fraseado, nos ornamentos. Quanto baile naquela voz. Aula. O resultado vocês podem ouvir no link abaixo. Ouçam “De Piedade” lá pelos 10 min. e 17 seg.:

 

Finalizada a gravação, despedidas no estúdio e voltei com o homem para sua casa. Para ser sincero, não lembro do que falamos neste retorno. Estava nas nuvens…

Wilson das Neves não cobrou um centavo para gravar no Baobá. O assunto nem entrou na pauta. Mas eu tinha que retribuir de alguma forma aquela gentileza. E fiquei semanas pensando como. Era óbvio e estava tão perto que não vi. Caiu a ficha. Entrei num site destes de lojas de materiais esportivos. Comprei uma camisa do Mengão, mandei escrever atrás DAS NEVES e remeti ao endereço do Mestre. Uns cinco dias depois tocou meu telefone, no visor apareceu WILSON DAS NEVES. Do outro lado da linha, uma criança vibrava com o presente que acabara de receber e abrir: “Já vou fazer a estreia dela no sábado, no baile com a Orquestra Imperial!”. E terminou com a conversa rápida com a frase: “Flamengo até morrer nós somos!”. Pouco disse, acho que só chorei.

Wilson das Neves. Inesquecível. Imortal. Bamba. Baluarte. Podem somar aqui adjetivos e substantivos, a lista é grande.

Encontrei o Das Neves outras duas vezes, este ano, 2017. As duas na Marquês de Sapucaí, lugar sagrado pra nós. Foi no ensaio técnico e depois no desfile do seu querido Império Serrano. Dois abraços, sorrisos, duas fotos.

Vá com Deus, Mestre. Nós ficaremos aqui neste mundinho miúdo e mesquinho, mais um pouco, lembrando do senhor, das suas histórias e nos emocionando com a sua arte.

Peço licença para carregar comigo o seu “Ô sorte!”, herdado de Roberto Ribeiro.

Ô sorte!

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