Sorriso Passista: Luto em Verde-e-Rosa

Passista Sorriso da Mangueira / Foto: Hélio Ricardo Rainho

Um dia, um sorriso negro fez-se samba; vestiu verde-e-rosa, irrompeu a quadra, rasgou a avenida, traduziu-se em ginga de passista!

“Aquilo é samba?”, “Será ele passista?”, “Ele não está sambando!”, “Que cadência estranha!”.

A resposta de samba de Sorriso da Mangueira aos seus questionadores estava na mente, no corpo, na alma. Nele mesmo, não nos outros. Ele se via e se projetava como um astro único da galáxia carnaval. Aos outros, a dúvida, o questionamento ou a imensa admiração. A ele, o movimento, o deslocamento, a transição. O prazer!

Sorriso da Mangueira tinha dois prazeres na vida: sambar sorrindo e vestir Mangueira!

Sorriso não era persona…ele era carnaval! Enredo de si mesmo, desfile concebido em seus devaneios, passagem de seu cortejo verde-e-rosa in loco, afrontando padrões e perturbando a ordem do rei. Seu samba no pé diferenciado tinha espasmos, impulsos elétricos, arritmia, êxtase, furor. Adentrava espaços restritos porque seu samba transcendente não conhecia regras, técnicas ou limites. Quando o corpo de Sorriso da Mangueira sambava, já era segundo estágio: era, em verdade, a alma que já estava sambando desde o primeiro batuque!

Estranho, único, mas essencial. Falava e fazia coisas que polemizavam sua já pictórica figura esguia, retinta, meio caricata. Quando rufavam os tambores e explodiam os metais, Sorriso se desconjuntava, eletrificava, ascendia ao Olimpo único do deus Baco que o conduzia sóbrio a tantos “evoés” alucinantes!

A morte súbita de Sorriso da Mangueira nos faz pensar muitas coisas. Sorriso nos deixou, neste triste ano de samba atravessado o tempo todo, com algumas lições peculiares. A primeira delas é a de que não suportamos os espelhos e holofotes a que tanto procuramos! Muitas vezes inebriados em vaidades e sentimentos de auto-projeção, outros passistas criticaram o samba de Sorriso, a ginga de Sorriso, o sentimento de projeção midiática que ele tinha. Declarado, aberto, transparente, Sorriso traduzia a verdade de muitos que floreiam e maquilam essa mesma pretensão. Mas sem a espontaneidade e a transparência com que Sorriso da Mangueira fazia.

Para ele, o Hospital Albert Schweitzer era um hotel na Europa, um internação era uma turnê internacional, a Mangueira tinha um Sorriso por estrela!

Seu rastro breve e inusitado de luz nos deixará lembrando de suas peripécias na quadras, suas histórias insólitas, seu mover esquálido e contagiante que tantos aplausos e acenos alcançou em vida.

Perdoa, Sorriso, se não soubemos entender com tanta profundidade o seu samba que nem você entendia; apenas vivia e praticava. Sem teoricismos, sem geometria, sem esses purismos estóicos que tanto apregoam para impedir que figuras como você possam transcender o mundo do samba cartesiano e singelamente sambar!

Deixaremos, neste 2017 que se encerra, o triste fim do coração de samba que parou de batucar. Sorriso já não nos sorri, não samba, não irrompe a quadra, não rasga a avenida.

Mas isso deve ser o que nossa mente tacanha ainda pensa. Pois, de alguma forma que nenhum de nós ainda compreende, aquele sorriso deve estar radiante e iluminado. Sambando e vibrando, emocionado e feliz.

Quem sabe, até, ele não esteja novamente nas quadras e avenidas…manifesto como luz única e especial da escola que sempre amou e defendeu. Que Deus abençoe e guarde o rastro de luz que o cometa Sorriso da Mangueira deixou entre nós!

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