‘O juiz ainda não apitou o final da minha partida’; carnavalesco Cebola fala tudo em entrevista especial

Nada na sua vida é comum. Um artista nato, movido pela força invisível da criação e dos desafios. Capaz de amar incondicionalmente, e ser feroz ao defender aquilo que julga correto. Diverso, complexo e cheio de talentos

Nada na sua vida é comum. Nem algo tão trivial: a forma como é conhecido. Claudio Cavalcante, poucos sabe quem é. Mas o carnavalesco Cebola, esse sim, o público reconhece de cara. Em entrevista especial ao SRzd, abriu o coração

Dono de inegável sinceridade, refletiu sobre a vida, sem rodeios ou censuras. Afastado do Carnaval desde uma inesperada saída no ano passado, mantém o estilo, próprio dos ‘gênios geniosos’; sofre por estar longe daquilo que mais ama, mas logo em seguida reage, se emociona, reverencia e contesta

“Eu fui criado na Vila Vintém. Chegou a década de oitenta, efervescência do Rock Nacional, aquela mudança política do país, aquela liberdade simbolizada no Fernando Gabeira, o som da Legião Urbana, a maconha, aquela rebeldia toda, isso mexeu muito comigo”.

“Aí, minha mãe não aguentava mais. Eu aprontando muito, aquela coisa. Então apareceu o Carnaval, eu tinha 16 anos. Fui levado para o barracão da Mocidade Independente, era ali na Praça Onze, em frente ao metrô, perto da Rua da Lama, antiga Vila Mimosa. Dei de cara com o Fernando Pinto, e ele já foi com a minha cara. Fernando era gente finíssima, muito a frente do seu tempo. Ele estava criando o enredo Tupinicópolis (1987)”.

“E eu fui trabalhar na chapelaria. Ele me deu buchas de tomar banho, um coquinho, umas plumas e falou: ‘Faz uma cabeça indígena aí, se eu gostar, você tá aprovado’. E pior que ele gostou. Aí eu também fui gostando, as coisas foram rolando, fui conhecendo os amigos dele, fui me envolvendo com esse pessoal. Tinha o diretor de TV, o Jorge Fernando, fui conhecendo a galera do teatro e tal. No segundo ano, comecei a decorar carros para o desfile Bye Bye Brazil, aí veio a morte do Fernando. Mas eu já tava apaixonado”.


Fernando Pinto foi um dos maiores carnavalescos do país, rotulado pelos críticos de ter estilo tropicalista. Fez parte da segunda geração do grupo Dzi Croquettes, além de dirigir e produzir figurinos e cenários para artistas como As Frenéticas, Elba Ramalho, Ney Matogrosso e Chico Anysio. Marcou época no Império Serrano, na década de setenta, e na Mocidade. Morreu prematuramente, aos 42 anos, num acidente de automóvel


Daquelas chamadas febres do momento, de frases, bordões ou slogans massivamente repetidos, uma das que estão na moda é: raiz versus Nutella; a primeira, para afirmar aquilo que tem essência, a segunda, em referência ao delicioso doce industrializado, para, de forma pejorativa, apontar algo sofisticado demais. Cebola é raiz. É raiz também, como canta o refrão histórico da escola de samba da sua vida, a verde e branco de Padre Miguel, no ano do campeonato de 1990, do qual ele fez parte

“… Sou Independente
Sou raiz também, sou Padre Miguel
Sou Vila Vintém…”
(Mocidade Independente de Padre Miguel, 1990, de Toco, Jorginho Medeiros e Tiãozinho)


Ferido. Talvez esse adjetivo possa ser o mais adequado para definir Claudio Cebola no encontro para a produção desta entrevista. Ferido, mas pronto, sedento para voltar e colocar em prática, novamente, seu conhecimento, sua arte e toda a energia represada

A cada frase, a cada resposta, um misto destes dois estados de espírito fica evidente. Ele é tudo ao mesmo tempo. Ao falar da infância, os mesmos traços da personalidade artística, tão conhecida no universo do Carnaval, se reproduzem; doçura e determinação

Claudio Cebola. Foto: SRzd

“Sou um cara muito sentimental, com meu passado, com minha família. Lembro do cabelo da minha bisavó, eu no colo dela, mexendo no cabelo dela. Minha avó quem me criou. E a casa era parede com parede com a quadra da Mocidade. Lembro até hoje o som da paradinha da bateria do mestre André. Isso sempre me contagiava. Eu esperava a Mocidade desfilar pelas ruas do bairro, era sensacional”.

“Tenho muitas recordações dessa época. Mesmo pequeno eu queria ver a Mocidade. Depois, comecei a ver os desfiles pela TV, madrugada a dentro, sem imaginar que um dia eu estaria nesse meio. Foi uma infância humildade, mas feliz, minha mãe era manicure e ao lado do meu pai deu conta de cuidar dos quatro filhos. Meu avô tinha um bar ao lado da quadra, a galera da Velha Guarda ia até lá, tomar cachaça, ou seja, a Mocidade fazia parte do meu dia a dia”.

Lucidez. Outro estado, esse de consciência, nem sempre esperado de um artista, sobretudo num país recheado de mediocridades intelectuais, cruelmente incapaz de ter a percepção e a sensibilidade sobre determinados temas

Ao mergulhar no tema Carnaval, Cebola marca território e defende conceitos. Depois das extraordinárias experiências no Rio de Janeiro, no momento nobre dos desfiles cariocas, conheceu a metrópole paulista, no início deste século, querendo fazer samba também. Antes de assinar seu primeiro projeto, emprestou seu talento intuitivo para importantes agremiações da cidade


“Em São Paulo, passei pelo Peruche, nos desfiles da ‘Mama África’, ‘São Paulo da Garoa’. Eu ajudava também a Império de Casa Verde, quando a escola começou sua caminhada, passei experiências interessantes. Numa delas, sumiram os calçados na véspera do Carnaval, a escola desfilou praticamente descalça, muitas histórias. Dali, despontei para ir para a Tom Maior. Cheguei na Tom em tempos difíceis, sem barracão, sem quadra. Mais na frente, anos depois, fazer o Milton Nascimento, num Acesso, foi sensacional, até pelo fato de o cara aceitar”.

Vídeo gravado em 2015 durante apresentação do samba-enredo da Tom maior

“Nesse processo, eu fui um dos caras que trouxe muita coisa do Rio pra São Paulo, essa coisa de acoplar carro, por exemplo. Acho que eu, o Wagner Santos e o Jorge Freitas, somos precursores de fazer um Carnaval mais elaborado aqui”.

“Tem muita gente nova aí que eu não sei de onde surgiu, mas eu não caí de paraquedas. Você pode até ter talento, mas é preciso vivenciar aquilo. Eu durmo em barracão desde os 16 anos de idade. E fui aprendendo muito, com carpinteiro, marceneiro, ferreiro, me aperfeiçoando em tudo que envolve a criação. Hoje eu conheço todo essa engrenagem em detalhes”.

No meio da conversa, uma pausa no Carnaval

Cebola mostra olhar atento ao dramático momento do país, em todos os aspectos. Reproduzindo a contundência ao defender suas ideias, posicionou-se como cidadão, considerando as frustrações do passado, com dificuldade para enxergar o que reserva o futuro

“As pessoas podem observar que nos meus trabalhos sempre tem alguma citação sobre discriminação, injustiças. Tenho ojeriza disso, sou amigo e respeito todo mundo, trans, índio, ateu, judeu, gay, homo, hétero, eu não tenho preconceitos. Foi a minha criação e o próprio Carnaval que me ajudou nisso, sabe”.

“As coisas estão passando dos limites, as pessoas não estão se respeitando. O problema maior, é a falta de educação. Não é, nem nunca foi, interesse dos políticos dar uma educação de qualidade ao povo, porque aí, com um povo instruído, eles não poderiam fazer o que fazem”.

“Eles são bandoleiros, saqueadores, e isso vêm desde a colonização. É uma herança. Não voto há muitos anos, não gosto de político. Nos anos oitenta, a gente até sonhou, surgiu o PT e tal, mas com o tempo ficou provado que são todos iguais, tudo uma corja. E hoje, tanto São Paulo, quanto o Rio, sucumbiram. São Paulo um pouco menos, mas infelizmente os problemas tomaram conta do país inteiro”.


“Admito que tenho um gênio muito forte”

“O Renato [Lage] é bem temperamental, acho que puxei isso dele, foram oito anos juntos”

“Ainda sou novo, estou buscando meu espaço, mas já tenho um currículo de respeito”

“Não vendo nada que é da escola, nem esculturas, nem adereços. Não ganho dinheiro de compositor, não pego percentual de nada, e acho que essa postura incomoda”

“Tem pessoas que estão na sua volta, com inveja, com recalque, querendo ser você”

“Vaidade tem em todo lugar, em qualquer segmento, mas no Carnaval tem muito”

“A galera critica muito o Paulo Barros, mas admiro o trabalho dele. Essa coisa de teatralização, eu gosto”


A saída tumultuada da Tom Maior, no meio do processo de execução do Carnaval deste ano, deixou sequelas. Nem poderia deixar de ser diferente. Sobre o assunto, Cebola faz o mea culpa. É possível perceber no diálogo, a ausência de mágoas. Mas também é evidente a ebulição dentro de um artista cheio de ideias e vontades, prontas para explodir em arte, urgentemente. Nessa espera, reconhece ídolos e referências, importantes na longa estrada

“Tenho convicção que ajudei muito a Tom. Acho que a nossa história deveria ter acabado de outra forma, de ambos os lados. Vida que segue. Admito que tenho um gênio muito forte. Em contrapartida, tenho um outro lado, sou um cara generoso, de bom coração, se eu ver alguém passando necessidade, eu ajudo na hora. Mas eu não gosto de aproveitadores”.

“Hoje amadureci e tenho autonomia para dar uma entrevista como essa, por exemplo, sem medo. Eu sou possessivo com meu trabalho, abro mão de tudo, da família e de tudo. Me entrego. Quando eu escrevo o enredo eu já visualizo o Carnaval pronto, a parte plástica. Quando eu escrevo eu já sei o que quero, e já tô pensando no lançamento, no samba, para que saia tudo de acordo com o que eu imaginei, com a minha criação”.

“Eu sou autodidata, eu vou na contramão do negócio, eu pego um arame, um material qualquer e faço um figurino na hora, não preciso de equipe grande, gosto de um time pequeno, pra ter tudo nas mãos. Isso as vezes causa resistência. Eu quero estar em todo o processo”.

“O Claudio Cebola é um profissional que conhece muito bem a dinâmica do Carnaval de São Paulo, aliás, ele ajudou a construir o que é hoje esse espetáculo, ele participou dessa evolução. Acho que ele merece um espaço novamente. Ele é um grande trabalhador, é um imersor de barracão, sem hora para entrar, nem para sair. É conhecedor de Carnaval e com o olhar que ele tem, seria muito bom ter ele de volta”.

(Amarildo de Mello, carnavalesco da X-9 Paulistana)

“Fernando Pinto. Ele era igual a mim, não sabia desenhar, mas sabia exatamente o que queria. Aquela coisa intuitiva, autodidata. Ele era genial. Por outro lado, eu admiro muito um cara chamado Roberto Szanieck, que não tá no circuito também e as pessoas criticam muito. A gente já conviveu bastante, brigava muito, fui assistente dele, no Salgueiro. Ele é um gênio; escrevendo, desenhando, produzindo”.

“Além dos ídolos, tem pessoas que eu respeito e tenho afinidade demais. Um é o Paulinho [Serdan], o outro o Sidnei [Carriuolo]. Eles passaram um bocado nas minhas mãos, mas foram inteligentes, souberam extrair tudo de mim. Na Mancha foi inesquecível o Carnaval de 2006, depois de um incêndio, uma volta por cima, uma grande guinada”.

“Depois fui para o Águia, e lá fiz aquele que considero meu melhor desfile, sobre o João Nogueira. Sentimos o gosto da vitória que não veio por um erro, mas erros acontecem. O Sidnei que me aguçou a fazer a sinopse poética, para ajudar o samba a sair, um texto como se já fosse um pré-samba, entre tantas outras coisas. Foi muito bacana”.

“Mas independente dos resultados e desse lance do gênio forte, é que eu não abro mão das minhas ideias. Eu participo de tudo, tudo mesmo; limpo barracão, limpo banheiro, gosto de tudo limpo, de tornar o dia a dia agradável, para todo mundo que está envolvido no trabalho e para quem vêm nos visitar, se sentir bem”.

“A gente teve uma parceria muito bacana. Trabalhamos juntos por alguns anos e o primeiro bom resultado da Mancha no Especial foi com o Cebola, Tivemos passagens bem emocionantes juntos, como em 2006. Gosto muito dele, muito mesmo. Acho ele extremamente competente, criativo e sempre dei oportunidade para as viagens dele. Ele precisa só se organizar um pouco, no momento que ele fizer isso, estará entre os maiores, porque ele é bom. Desejo toda a sorte do mundo para ele, porque é meu amigo e da minha família, e de todos aqui na entidade também”.

(Paulo Serdan, presidente da Mancha Verde)

“Chego a passar mal nesse tempo que estou parado. São mais de 30 anos dentro de um barracão, ficar de fora me faz muito mal. Fiquei muito magoado com a falta de atenção. Sou um cara que fez muito pelo Carnaval”.

“Vejo tanta gente sem expressão, acumulando maus resultados, e essa gente tá sempre empregada. E eu, acumulando bons resultados, nessa situação. Estou trabalhando em casa, criando enredos e tal. E criei um especialmente para o Grupo Especial”.

“É um enredo sobre a Daniela a Mercury, por toda a contribuição dela para a cultura popular brasileira. Tava muito fissurado nessa ideia, não deu pra ser agora. Mas com certeza, será mais na frente, por tudo que ela representa como cidadã”.

“Já tem até nome; ‘O canto dessa cidade é meu, a cor dessa cidade sou eu. Daniela Mercury nos batuques e swings de Salvador’. Enquanto isso, sigo criando”.

“Estou voltado para as pessoas que eu amo; minha mãe, minha rainha, meu maior ídolo, que infelizmente não está mais entre nós, e o Iuri, meu afilhado. Ele foi criado por mim e pela minha mãe, é uma herança que Deus colocou no meu caminho. Tudo o que faço, é por ele”.


Nada na sua vida é comum. Nem mesmo o único desfile que assinou na escola da sua vida, a Mocidade Independente, em 2009, onde foi criticado por muitos após um modesto 11º lugar. Ouvindo e emocionando-se muito com a canção ‘Quando a gira girou’, de Zeca Pagodinho, Cebola espera, como diz um dos versos da canção: 

“… Só Deus sabe o quanto se labutou
Custou mas depois veio a bonança…”

Comentários

 




    gl