Entrevista especial: um mestre com identidade, e personalidade

Quem olha esse jovem de recém-completados 32 anos de idade na frente da bateria de uma das mais importantes escolas de samba do Brasil, certamente não imagina que trata-se de um veterano. Veterano de Rosas de Ouro. Sua trajetória e relações com esse pavilhão, são antigas. Desde o primeiro desfile, lá se vão mais de duas décadas. Chegou no terreiro azul e rosa em tempos de glória, no ano do tricampeonato, em 1992, levado por um primo. Rafael Oliveira, o mestre Rafa, usou da conhecida sinceridade para falar de Carnaval e de outros tantos temas em entrevista especial ao SRzd

“Nasci na Vila Palmeiras, na Freguesia do Ó. Com 12 anos, fui morar na rua de trás da Rosas de Ouro, que a gente chama de ‘rua de terra’, lá passa um rio. Hoje ela é canalizada e asfaltada. Cheguei na escola em 1992. Comecei na ala das crianças, em 1993. Participei de projetos sociais, aulas de capoeira. Tinha café da tarde, escolinha mirim”.

“Mas meu primeiro contato com a música, foi aos 5 anos, numa igreja. Meu pai me levou para tocar bateria. Desde então, não parei mais. Minha família sempre foi muito musical e foi dentro de casa que comecei a aprender. Meu tio era DJ, meu avô ouvia muito Luiz Gonzaga, além de tias e primos, que também curtiam muito música”.

“Minha família não era muito de Carnaval. Mas quando me tornei diretor, aí começaram a frequentar. Minha mãe, meu padrasto, minha irmã, e sobrinhos, que também fazem parte da bateria. Minha mãe mora em uma comunidade, ali atrás da Rosas de Ouro, e boa parte da bateria mora na mesma região, então formamos uma grande família”.

“Tenho muitos ídolos na música. No samba, até já toquei com alguns deles. Curto muito Leci Brandão, Jorge Aragão, Fundo de Quintal e Jorge Ben, além de
Michael Jackson, Caetano, Djavan, e tantos outros. Escuto muita black music e música eletrônica. No Carnaval; Jamelão, Wander Pires e mestre Sombra, da Mocidade Alegre”.

A estreia como mestre aconteceu em 2014, e foi inesquecível. Literalmente. Inesquecível era o título do enredo daquele ano. No dia do desfile, um dos maiores dilúvios já registrados no Carnaval de São Paulo. Com direito a chuva de granizo, a Sociedade Rosas de Ouro enfrentou a água e as ‘pedras’ que vinham do céu. Foi vice-campeã. Para Rafa, além de superar as adversidades, o orgulho pela conquista do primeiro prêmio da história da bateria azul e rosa; o troféu de Revelação para o jovem mestre


“Não esperava e não acreditava que seria mestre. Eu era um cara muito encrenqueiro, bagunceiro. Mas as pessoas me alertavam que eu tinha potencial pra ser mestre. Quando eu era diretor, não aparecia tanto, nem mesmo nos ensaios. Até que em 2011 tive um problema com a justiça e, quando voltei, cheguei com uma cabeça diferente. Voltei em 2012. Um ano depois, assumi a bateria para o desfile de 2014. O enredo era ‘Inesquecível’, e foi inesquecível mesmo. Aquela chuva nos prejudicou muito e tínhamos tudo para sermos campeões”.

“Bateria é o coração da escola, simples assim. Já vi escola desfilar sem alegoria, sem fantasia, enfim. Mas sem bateria, não. Sem coração, sem vida”

“Sou mestre hoje, agradeço a escola, mas sem o ritmista, não vou a lugar nenhum”

“Lá aprendi a falar, andar, tocar. Vou ser Rosas de Ouro sempre”

“O povo precisa de muito mais; precisa de creche, de posto de saúde, de hospital e de cultura. Um país sem cultura, não é nada”

“O Rosas de Ouro é tachada de ser uma escola de elite, mas nossa bateria é de comunidade”

“Não gosto de polêmica e fofoca. Quer falar comigo, vem me procurar. Enquanto eles falam, eu trabalho”

“Meu negócio é trabalhar. Amo trabalhar. Vendo relógio, vendo casa, vendo carro. Se precisar carpir um terreno, eu vou também”

“Falam que eu sou mulherengo. Quem viu, mentiu. Minhas particularidades, eu faço fora da Rosas de Ouro”

“Sendo mestre, tenho que me preocupar com a formação da molecada que está na minha bateria, dando exemplo”

“As crianças e os adolescentes que chegam desde cedo na escola de samba, se livram de caminhos errados”

“O nosso Carnaval? Sempre dá pra melhorar. Particularmente gostaria que as escolas de samba voltassem a ser o que foram há uns anos atrás”

Em curto espaço de tempo, imprimiu sua marca e seu estilo a frente da ‘Bateria com Identidade’. Identidade no som, e na personalidade. Assim, rapidamente se tornou protagonista no segmento e, reconhecidamente, é daqueles sambistas de raiz, sem papas na língua. Fala o que pensa, diante ou longe dos microfones. Abriu o coração sobre sua relação com os ritmistas, arriscou o futuro, comentou política e disse o que pensa dos críticos de plantão. Recuperando-se de uma gripe enquanto dava essa entrevista, destacou a importância da escola de samba na vida de crianças e adolescentes


“Sou muito sério na relação com meus ritmistas. Claro, nunca somos unânimes, e eu também não busco isso, mas nossa relação é a melhor possível. Temos uma rapaziada da comunidade e que foi formada junto comigo”.

“Hoje eles são a base e o alicerce da nossa bateria. Tenho muitos amigos lá. Mas na hora do trabalho, a seriedade prevalece. Deixo eles a vontade, e estou sempre a disposição pra ajudar, até em coisas fora da escola. É tudo por eles, é só por eles. Sou mestre hoje, agradeço a escola, mas sem o ritmista, não vou a lugar nenhum”.

“Dei aula em Parelheiros, numa ONG, é tudo muito difícil. A relação dos políticos com as comunidades é muito difícil. Muitos só aparecem na época de eleição. Apesar de tudo, vejo uma pequena melhora, principalmente aqui na nossa região”.

“Porém, dava pra se fazer muito mais. Tanto o governo estadual, quanto o municipal. Acho que falta eles se entenderem e trabalhar em favor do povo. O povo precisa de muito mais; de creche, de posto de saúde, de hospital. A gente só quer o que é de direito, nada mais”.

“O nosso projeto ‘Samba se aprende na escola’, tira da rua, só através da bateria, 120 crianças. A escola de samba ajuda a formar a personalidade dessa molecada e a gente coloca algumas regras para contribuir nesse processo. E eu como mestre, tenho que dar o exemplo”.

“Dentro de uma comunidade, uma escola de samba faz todo o sentido. As crianças e os adolescentes que chegam desde cedo na escola de samba, se livram do mau, e aprendem coisas bacanas e se aperfeiçoam desenvolvendo as várias atividades que envolvem o dia a dia das agremiações”.

“Olha, em todos os segmentos tem pessoas de mau caráter. Eu não lido com elas, simplesmente não lido, ponto final. Cada um faz o que quer. Tem muita gente, dentro da própria escola, por exemplo, que não me apóia, que fala mau mesmo. Eu sei que as pessoas não precisam gostar de mim. Mas o meu trabalho, esse tem que ser respeitado. E ele está aí, sendo reconhecido. Eu não me alto promovo, as pessoas que avaliem. Quem quiser estar do meu lado, vai estar, quem não quiser, sem problema”.

JR Silva, jornalista e componente da Sociedade Rosas de Ouro há mais de quatro décadas

“Falar do Rafa é simples. Um cara tranquilo, na dele, cria do projeto ‘Samba se aprende na escola’, criado pelo presidente Basílio. Desenvolve um trabalho excepcional, feito com humildade, sempre procurando ouvir a opinião de todos. E nessa caminhada, sem sombra de dúvida, colocou a bateria da Rosas  de Ouro entre as três melhores da cidade de São Paulo. Além disso, tem muito conhecimento. Ele exerce a função de mestre, ele ensina os ritmistas, pegando o instrumento na mão e mostrando pra cada um o que é possível extrair”.

Kito Ferreira, mestre de bateria da escola de samba X-9 Paulistana

“Admiro muito o trabalho do Rafa. Além de ser um grande mestre, falando do especto técnico, o fato de ele ser cria da casa é algo que eu destaco sempre. Pode parecer até brincadeira para quem não conhece muito do assunto, mas ser cria é muito mais difícil, porque as emoções acabam, de alguma forma, fazendo parte do trabalho. E ele consegue conciliar isso, é um excelente profissional. Ainda acho demais a personalidade dele, de falar o que pensa. E o sucesso do trabalho dele, também tem o ingrediente de ter um ótimo quadro de diretores ao seu lado. Desejo todo o sucesso”.

 

“Não sei se estarei no Carnaval daqui a dez, vinte anos. A música é um ramo muito ingrato. Eu sou empreendedor, e tenho muita disposição para empreender. Mas se não estiver na Avenida, quero estar perto, assistindo. Não vivo sem Carnaval. De alguma forma, vou curtir”.

“O Rafa de ontem era um menino sonhador, um músico que não tinha pretensão de ser mestre de bateria. Mas foi uma oportunidade que apareceu. Era imaturo, jovem. Hoje sou um cara mais centrado, e que sabe o que quer. Eu sei aonde quero chegar”.

“Quero poder cuidar da minha família, dos meus filhos. Quero ser uma pessoa cada vez mais tranquila, sem deixar de ser verdadeiro. E acreditando que nosso país tem jeito e as pessoas são verdadeiras. Quero ser bem sucedido no trabalho e na minha vida pessoal”.

“Esse momento, é o momento de aproveitar e me doar ao máximo naquilo que estou vivendo como mestre de bateria. Mas não quero ser eterno no Carnaval. Tenho a pretensão de conhecer o mundo, outras culturas. Espero que Deus me dê sabedoria para viver nesse mundo cheio de problemas e poder ter uma vida tranquila”.

All Night Long, ou All Night; ‘A noite toda’. O clássico de Lionel Richie é a música que ele escolhe para o definir. Life is good, wild and sweet; ‘A vida é boa, selvagem e doce’. Este trecho da música, talvez traduza muito de sua personalidade. ‘Bem, meus amigos, a hora chegou, de ir às nuvens e se divertir um pouco, jogue fora o trabalho a ser feito, vamos tocar a música (tocar, tocar)’. É isso que o mundo espera de você, mestre Rafa


*Créditos das fotos utilizadas nesta reportagem: Cláudio L. Costa, Wadson Ferreira e Leandro Nascimento

 

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