Salgueiro 2018: escola traz visual imponente em enredo com representatividade negra

Desfile Salgueiro 2018. Foto: Juliana Dias/SRzd

O vermelho do Acadêmicos do Salgueiro mais uma vez predominou na Avenida Marquês de Sapucaí. Quarta escola a desfilar na segunda noite de desfiles do Grupo Especial do Rio de Janeiro, a agremiação passou pelo Sambódromo com fantasias luxuosas que desafiaram a crise financeira deste Carnaval. Para 2018, o Salgueiro apostou novamente em um enredo afro, desta vez dedicado às mulheres. “Senhoras do Ventre do Mundo” foi desenvolvido pelo carnavalesco Alex de Souza.

A agremiação homenageou diversas mulheres negras com importância histórica. Algo bem interessante foi o último carro da escola que trouxe uma alegoria em referência à escultura Pietà de Michelangelo. Ao invés dos traços europeus da obra original, a escola desfilou com uma Pietà negra. No carro também tinham trechos do livro “Quarto de Despejo” de Carolina Maria de Jesus. Catadora de papel, Carolina foi uma escritora negra que teve seu diário publicado; e que não é reconhecido pela Academia Brasileira de Letras.

A tradicional escola tem se destacado bastante na última década do Carnaval carioca. Nos últimos dez anos, o Salgueiro permaneceu entre as cinco escolas mais bem classificadas, conquistou quatro vice-campeonatos e foi a campeã de 2009 com o aclamado desfile “Tambor”.

Enredo

Africanidades e representatividade negra são temas bastante recorrentes nos enredos Salgueiro. Desta forma, o carnavalesco Alex de Souza, para sua estreia na vermelho e branca, teve o desafio de fazer um belo desfile e se destacar no vasto currículo da agremiação. O enredo “Senhoras do Ventre do Mundo” evidenciou a importância de mulheres negras desde o início da humanidade até os dias atuais.

O desfile foi iniciado com uma combinação de espiritual e científico. Salgueiro levou, logo no início, as Yabás na comissão de frente, entidades que representam a fertilidade; a Grande Ya na ala das baianas, as primeiras mães que deram origem à raça humana; e a Grande Mãe no abre-alas, que significa o princípio feminino da criação do mundo dentro das religiões de matrizes africanas. Já no lado científico, foi mostrado que toda a humanidade faz parte de evoluções de povos oriundos da África.

No primeiro setor, a escola recuperou a história de rainhas negras que tiveram grande importância há milhares de anos. Foram representadas Makeda, a rainha de Sabá, e a linhagem de rainhas Candaces, soberanas do Império Meroe; as Candaces, inclusive, já ganharam enredo próprio no Salgueiro em 2007. O segundo setor explorou a autoridade por meio do divino. Ao longo das alas, deusas e deuses cultuados em terras africanas foram evidenciados; principalmente os deuses da Terra Negra Kemet (onde hoje é o Egito), que veio representado no segundo carro.

No terceiro setor, as guerreiras negras emblemáticas são mais uma vez lembradas. Foram evidenciadas as mulheres que lutaram contra o imperialismo europeu. Do continente africano foram representadas a rainha Nzingha de Angola e a Yaa Asantewaa dos Ashanti. Do Brasil foram retratadas mulheres como Tereza de Benguela, líder do quilombo do Quariterê; Maria Filipa de Oliveira, que lutou junto com os baianos pela independência do Brasil; e Luíza Mahin, líder da Revolta dos Malês. O carro que fechava o setor trouxe mais mulheres negras que se destacaram como guerreiras.

Agora com o foco no Brasil, o quarto setor mostrou as “mães pretas” — matriarcas que unem os negros e que também foram as primeiras empreendedoras do Brasil como as quituteiras e as doceiras. Uma das alas do setor fez referência ao Carnaval do Salgueiro de 1977 com o enredo “Do Cauim ao Efó, com Moça Branca, Branquinha”. O quinto setor explorou a parte espiritual das mulheres descendentes da África. Herdeiras de conhecimentos de seus antepassados, elas dominam saberes das folhas, cura e dos feitiços. Para encerrar o desfile, o sexto e último setor retratou as negras que perpetuaram os valores culturais por meio dos livros. Vale reforçar o destaque dado, no último carro da escola, a trechos do livro “Quarto de Despejo” de Carolina Maria de Jesus. Também foram homenageadas as mulheres que fizeram história no Salgueiro, neste caso, sendo elas negras ou não.

Quando a gente se perguntava como o Salgueiro sobreviveria sem Renato Lage, vem Alex de Souza e nos dá essa beleza inebriante.

Rachel Valença, comentarista do SRzd, elogiou a estreia do carnavalesco Alex de Souza no Salgueiro e destacou a sensibilidade no desenvolvimento do enredo. “Quando a gente se perguntava como o Salgueiro sobreviveria sem Renato Lage, vem Alex de Souza e nos dá essa beleza inebriante. O Salgueiro é uma escola de sorte. Nós também. Vivemos para ver um desfile inesquecível. A sucessão de cores, as esculturas perfeitas, a sensibilidade da abordagem ao feminino, tudo maravilhoso”, concluiu.

Comissão de frente

Coreografada por Hélio Bejani — que comanda o setor desde 2008 — a comissão de frente do Salgueiro trouxe cinco Yabás e dez Senhoras que querem ter filhos. As Yabás são entidades que representam a fertilidade nos cultos de matrizes africanas. Na comissão, em uma performance coreografada com um pouco de teatralidade, elas concediam a benção da maternidade para as Senhoras. A apresentação teve auxílio de cinco tripés que separados representavam oratórias e, quando unidos, formavam uma cabaça. Em conversa com o SRzd, Hélio ressaltou a simbologia da apresentação. “É uma comissão que explora a fertilidade. A cabaça tem uma simbologia significativa na questão do mistério da vida. Fizemos uma apresentação para emocionar”, comentou.

Na frente dos jurados, a comissão de frente apresentou esse processo da benção. As Senhoras se fechavam dentro da cabaça enquanto as deusas performavam do lado de fora. Quando saíam, elas carregavam balões que representavam o feto dentro da placenta. Ao entregar os balões para as deusas, estas também se fechavam dentro da cabaça. Enquanto isso, as Senhoras faziam uma coreografia que lembrava um rito africano. Quando a cabaça era aberta novamente, as deusas carregavam bebês e entregavam para as Senhoras que os acolhiam em mantos com a bandeira do Salgueiro. Para Márcio Moura, comentarista do SRzd, a apresentação foi bastante correta nos quesitos técnicos e plásticos. Márcio ressaltou que o figurino da comissão auxiliou bastante no processo coreográfico e que os tripés colaboraram para criar um fundo de cena.

Casal de mestre-sala e porta-bandeira

Após conquistarem a nota máxima em 2016 e 2017, o mestre-sala Sidclei Santos e a porta-bandeira Marcella Alves desfilaram com sangue nos olhos em busca da nota máxima. Sidclei e Marcella desfilam juntos na posição de primeiro casal de mestre-sala e porta-bandeira desde 2014. “A nossa dança é 100% tradicional, moldada com base nos casais antigos e seguindo a linha que a gente vem fazendo nos últimos anos”, contou. Marcella comentou também sobre sua parceria com Sidclei e o desafio de se superar a cada desfile. “A preparação para este ano foi mais tranquila porque são cinco anos de parceria com o Sid. A gente já se conhece de olhos fechados. O grande desafio do Carnaval é fazer uma coreografia mais elaborada do que o ano anterior para encantar ainda mais”, afirmou.

O Mestre Manoel Dionísio e a professora Eliane Santos de Souza, comentaristas do SRzd, elogiaram o trabalho do primeiro casal e destacaram evolução do mestre-sala Sidclei Santos. Dionísio mencionou que Sidclei o surpreendeu este ano e que o mestre-sala acompanhou o ritmo da porta-bandeira Marcella Alves, que apresenta um bailado diferenciado na Avenida. Já Eliane comentou sobre o equilíbrio e fluidez da parceria. A especialista também salientou o passo “carrapeta” do mestre-sala.

A fantasia do primeiro casal representava os primórdios da humanidade. Em tons de vermelho e laranja, o figurino continha detalhes de arte rupestre e referência a Eva Negra, um dos fósseis mais antigos já encontrado. “A nossa fantasia é uma homenagem a Lucy, o hominídeo mais antigo já encontrado”, explicou.

Bateria

A tradicional bateria Furiosa da Academia do Samba deu um show na última noite de desfiles do Grupo Especial. Comandada desde 2005 pelo Mestre Marcão, a Furiosa veio tradicional e com muito preparo. “Foram oito meses de ensaio para fazer uma apresentação simples e eficaz; eu não sou muito de ficar enfeitando. Fizemos seis bossas que adaptamos em três”, revelou. Marcão comentou também sobre os detalhes apresentados na Avenida e os instrumentos levados. “Eu gosto de pegar as nuances do toque e adaptar para o surdo. Se ficar colocando timbal, tumba e outras coisas, você acaba enchendo demais a bateria. E eu não gosto muito disso. Também não gosto de ficar botando muita coreografia. Ou o ritmista presta atenção na coreografia, ou no ritmo”, contou.

Desfile Salgueiro 2018. Foto: Juliana Dias/SRzd

Para Bruno Moraes, comentarista do SRzd, a bateria do Salgueiro estava muito confiante no seu trabalho e conseguiu fazer uma ótima apresentação. “Mestre Marcão tirou tanta onda neste desfile do Salgueiro que ele veio tocando caixa e comandando a Furiosa ao mesmo tempo. Seguros de que nada daria errado em sua bateria, os diretores e ritmistas fizeram uma excelente performance. Com bossas complexas e eficientes, a Furiosa passou perfeita nos quatro módulos de julgadores. Que desfile da bateria do Salgueiro!”, comentou.

Há mais de uma década como rainha de bateria da escola, a atriz e modelo Viviane Araújo fez mais uma bela passagem na Avenida. Sua fantasia representava Hatshepsut, a primeira rainha-faraó do Antigo Egito. Em conversa com o SRzd, Viviane comentou que o amor que ela tem pela escola é muito grande e que a comunidade retribui esse carinho. Quando perguntada sobre as diferenças entre os desfiles de São Paulo e Rio de Janeiro, Viviane afirmou que não consegue ver distinção pois já está há muitos anos nos dois sambódromos.

Desfile Salgueiro 2018. Foto: Juliana Dias/SRzd

Samba e carro de som

Este ano, o carro de som do Salgueiro foi comandado pelo trio de intérpretes Leonardo Bessa, Hudson Luiz e Tuninho Júnior. Enquanto Hudson e Tuninho estrearam no posto, Leonardo completou oito anos como intérprete da agremiação. O samba-entoado pelo trio foi composto por Xande de Pilares, Demá Chagas, Dudu Botelho, Renato Galante, Jassa, Leonardo Galo, Betinho de Pilares, Vanderley Sena e Ralfe Ribeiro. O comentarista do SRzd Wanderley Monteiro ressaltou que o samba teve a cara da agremiação. “Salgueiro trouxe um samba bem Salgueiro. Um samba que identifica a escola, e, até por isso, levantou setores da arquibancada. Melodia em lamento quando a letra pede, sem perder o pique e a alegria de cantar da vermelho e branco da Tijuca”, afirmou.

Fantasias, alegorias e adereços

Em um ano que o Carnaval carioca foi assombrado pela crise financeira e por cortes na subvenção da prefeitura, o Salgueiro exibiu fantasias bastante luxuosas. De acordo com o carnavalesco Alex de Souza, as fantasias foram confeccionadas com materiais com texturas que dão uma aparência de riqueza maior do que o verdadeiro valor. A agremiação explorou uma palheta de cores singular para cada ala e conseguiu fazer uma passagem exuberante. Quando falava das origens africanas, tons terrosos e cores quentes ganhavam destaque. Já no Egito Antigo, muito dourado, preto e branco. Ainda assim, o tradicional vermelho da agremiação predominou durante quase todo o desfile (principalmente nos carro alegóricos). O primeiro carro alegórico passou pela Avenida com parte de uma das esculturas traseiras danificada. O dano ocorreu quando a agremiação passou por um viaduto antes de entrar na Avenida.

Hélio Rainho, comentarista do SRzd, ressaltou que o carnavalesco se adequou ao padrão do Salgueiro e trouxe um desfile com uma tradução muito clara. “Sem sombra de dúvidas, um dos mais espetaculares desenvolvimentos plásticos que a Avenida Marquês de Sapucaí assistiu esse ano”, elogiou.

Harmonia e evolução

O Acadêmicos do Salgueiro desfilou com 34 alas e seis carros alegóricos. Com muita animação e energia, a agremiação passou pela Avenida sem problemas e com ótima fluidez. Os componentes da escola entoaram o samba-enredo muito alto e tentavam animar o público na arquibancada e nos camarotes.

Veja também:

– Vídeo: Após 11 anos de reinado, Viviane Araújo fala sobre ter virado referência do Salgueiro

– Vídeo: Marcella e Sidclei se emocionam ao falar de parceria no Salgueiro

 

Veja fotos do desfile

Ficha técnica da escola

Local: Andaraí, Rio de Janeiro
Fundação: 05 de março de 1953
Cores: Vermelho e Branco
Presidente: Regina Celi Fernandes
Carnavalescos: Alex de Souza
Diretor de Carnaval: Alexandre Couto
Diretor de Harmonia: Comissão de harmonia
Mestre de bateria: Mestre Marcão
Rainha de bateria: Viviane Araújo
Mestre-sala e porta-bandeira: Sidclei Santos e Marcela Alves
Coreógrafos da comissão de frente: Hélio Bejani
Enredo de 2018: “Senhoras do Ventre do Mundo”
Número de alas: 34
Número de carros alegóricos: 06

Samba-enredo de 2018:

SENHORAS DO VENTRE DO MUNDO INTEIRO
A LUZ NO CAMINHO DO MEU SALGUEIRO
A ME GUIAR…VERMELHA INSPIRAÇÃO
FAZ MISTURAR AO BRANCO NESSE CHÃO
NA FORÇA DO SEU RITUAL SAGRADO
RIQUEZA ANCESTRAL
DEUSA RAIZ AFRICANA
BENDITA ELA É… E TRAZ NO AXÉ UM CANTO DE AMOR
MAGIA PRA QUEM TEM FÉ
NA GIRA QUE ME CRIOU

É MÃE É MULHER A MÃO GUARDIÃ
CALOR QUE AFAGA PODER QUE ASSOLA
NO VALE DO NILO A LUZ DA MANHÃ
A FILHA DE ZAMBI NAS TERRAS DE ANGOLA

GUERREIRA FEITICEIRA GENERAL CONTRA O INVASOR
A DONA DOS SABERES CONFIRMANDO SEU VALOR
ECOOU NO QUARITERÊ
O SANGUE É MALÊ EM SÃO SALVADOR
OH MATRIARCA DESSE CAFUNDÓ
A PRETA QUE ME FAZ UM CAFUNÉ
AMA DE LEITE DO SENHOR
A TIA QUE ME ENSINOU A COMER DOCE NA COLHER
A BENÇÃO MÃE BAIANA REZADEIRA
EM MINHA VIDA SEU LEGADO DE AMOR
LIBERDADE É RESISTÊNCIA
E À LUZ DA CONSCIÊNCIA
A ALMA NÃO TEM COR

FIRMA O TAMBOR PRA RAINHA DO TERREIRO
É NEGRITUDE… SALGUEIRO
HERANÇA QUE VEM DE LÁ
NA GINGA QUE FAZ ESSE POVO SAMBAR

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