Paraíso do Tuiuti 2018: Comissão de frente emociona em enredo sobre a Lei Áurea

Desfile Paraíso do Tuiuti 2018. Foto: Leandro Milton/SRzd

Pelo segundo ano consecutivo no Grupo Especial, a Paraíso do Tuiuti foi a quarta escola a desfilar no primeiro dia de apresentações na elite do Carnaval do Rio de Janeiro. Com o enredo “Meu Deus, Meu Deus, Está Extinta a Escravidão?”, a Azul e Branca de São Cristóvão contou os 130 anos da promulgação da Lei Áurea, decreto assinado pela então Princesa Isabel em 1888, e que tornava todos os escravos brasileiros, livres.

À frente da escola desde 2015, o carnavalesco Jack Vasconcellos percorreu a história de forma didática, mostrando todos os percalços que os negros – agora livres – enfrentaram para conseguir, em suma, se tornarem parte da sociedade. Historicamente, a Lei Áurea criou uma nova subdivisão de classes sociais no Brasil. Os negros não eram vistos como membros da sociedade, tendo, assim, problemas para arrumar empregos, integração e igualdade de direitos.

Desfile Paraíso do Tuiuti 2018. Foto: Leandro Milton/SRzd

No geral, o desfile foi bom. Jack Vasconcellos usou bem o tema do enredo este ano e trouxe à Sapucaí uma apresentação de fácil entendimento.

Chegar, algumas chegam, permanecer que é o detalhe

Em entrevista ao SRzd, o presidente da Paraíso do Tuiuti, Renato Thor, falou sobre sua luta para tentar fazer da escola reconhecida por estar no Grupo Especial. “O Paraíso do Tuiuti vem sempre apresentando bons Carnavais. Sempre com seus enredos culturais e históricos, e a Paraíso do Tuiuti, mais uma vez, vem fazendo um belo Carnaval. E, hoje, vestindo o chinelo da humildade, onde eu venho sempre lutando, para que a minha escola seja vista como uma escola de samba do Grupo Especial. Porque chegar, algumas chegam, permanecer que é o detalhe”.

Enredo

Desfile Paraíso do Tuiuti 2018. Foto: Leandro Milton/SRzd

Jack Vasconcellos pôs na Avenida mais um enredo afro. Desta vez, contado sob a visão do negro, escravo, que recebe sua carta de alforria com a assinatura da Lei Áurea. Se este seria o fim de um problema, os recém libertos se deparam com uma série de outros: a falta de emprego, favelização e diversas situações que ocorrem com o surgimento de uma nova classe social.

Os negros no século XIX não eram vistos como dignos de um emprego, de um local de moradia e de um sistema básico para sobreviverem. Como resultado, no Rio de Janeiro, capital do país, surge a primeira favela brasileira, o Morro da Providência (ou Morro da Favela, como era conhecido na época).

Comissão de frente

Desfile Paraíso do Tuiuti 2018. Foto: Leandro Milton/SRzd

A comissão de frente emocionou. Patrick Carvalho, que estreia no Grupo Especial, mostrou a qualidade de seu trabalho. Encenando momentos da escravidão, onde negros acorrentados sofriam maus tratos de um negro semelhante, intitulado Capitão do Mato, o coreógrafo optou por um trabalho voltado para um lado realístico. Na Avenida, o que se via eram realmente escravos sofrendo maus-tratos, acorrentados, e com mordaças.

Com um tripé que simulava uma senzala, moradia dos escravos nas fazendas brasileiras, na época, de café, um bailarino simulava a morte e, posteriormente, uma ressureição provida por pretos velhos, símbolo de religiões afro-brasileiras, com a assinatura da Lei Áurea. O Brasil foi o último país do mundo a acabar com o esquema de trabalho forçado.

Desfile Paraíso do Tuiuti 2018. Foto: Leandro Milton/SRzd

O trabalho foi extremamente simples. Patrick Carvalho não recorreu a telões de LED, iluminação ou maravilhas da tecnologia para sua comissão de frente. Foi um trabalho orgânico, completamente proposto e executado pela eficácia cênica, e que gerou aplausos, comoção e lágrimas por toda a Avenida. Um trabalho que, certamente, posiciona o coreógrafo a um novo posto.

Casal de mestre-sala e porta-bandeira

Desfile Paraíso do Tuiuti 2018. Foto: Leandro Milton/SRzd

A interação entre Marlon Flores e Danielle Nascimento foi boa. O primeiro casal de mestre-sala e porta-bandeira da Paraíso do Tuiuti passou pela Sapucaí muito bem, com uma linda fantasia representada pelas cores da escola.

O casal ocupou bem o espaço destinado à dança diante da cabine julgadora.

Segundo Eliane Santos Souza, comentarista do SRzd, o casal teve destaque positivo. “Marlon Flores e Danielle Nascimento, primeiro casal da Tuiuti, realizaram um bailado tradicional expressando alegria e sequência de movimentos coordenados e fluentes como o cruzado e o aviãozinho quando a coreografia exige o deslocamento da porta-bandeira com o apoio do mestre-sala. Percebeu-se harmonia, concordância, simpatia na postura do par, que apresentou gestual próprio do bailado com reverências entre lisuras do mestre-sala. O dançarino executou passos miúdos e variados, e o casal ocupou bem o espaço destinado à dança diante da cabine julgadora. Daniele Nascimento realizou com maestria o passo ‘patinete’ da famosa Vilma Nascimento”.

Segundo o comentarista do SRzd, Mestre Manoel Dionísio, foi o resultado de muito trabalho.

Marlon Flores seguiu a carreira do pai.

“Apesar de todo o sufoco que eu passei, valeu a pena para ver o Marlon Flores. Nós estamos fazendo um trabalho duro desde a idade que ele tinha de nove aninhos e hoje ele já está com 21 ou 22. Filho de Marcelinho, que foi o primeiro mestre-sala da São Clemente durante 22 anos. Então, Marlon Flores seguiu a carreira do pai. A única diferença do pai para o filho é que o pai é pequenininho e o Marlon puxou à mãe, então está um negão grandão bonito, lindo. Dança muito, tem uma postura maravilhosa e ele e a Daniele, hoje, chegaram ao extremo da beleza da dança”.

Bateria

Desfile Paraíso do Tuiuti 2018. Foto: Leandro Milton/SRzd

No comando da Bateria SuperSom, Mestre Ricardinho fez um ótimo trabalho durante o desfile. Com boa execução de bossas e marcações, rendeu à escola um bom desfile. Representando os “Feitores”, responsáveis pela vigia das fazendas na tentativa de impedir a fuga dos escravos e que puniam as “condutas inadequadas” da escravaria, contou com uma fantasia que não atrapalhou o desempenho.

Segundo Claudio Francioni, especialista em bateria do SRzd, o desempenho foi preciso:

Destaque para o perfeccionismo na execução das bossas.

“A bateria da Tuiuti passou muito bem. Destaque para o perfeccionismo na execução das bossas. Marcações com excelentes afinações graves e à frente da bateria com instrumentos leves, muito precisa.”

Desfile Paraíso do Tuiuti 2018. Foto: Leandro Milton/SRzd

Moradora do bairro de São Cristóvão, berço da escola, Carol Marins foi a rainha de bateria do Carnaval 2018. Com a fantasia “Espírito Quilombola”, representou a luta pela liberdade.

Samba e carro de som

Desfile Paraíso do Tuiuti 2018. Foto: Leandro Milton/SRzd

O samba da Tuiuti passou bem. Composto por Claudio Russo, Moacyr Luz, Dona Zezé, Jurandir e Aníbal, empolgou a Sapucaí com trechos que representavam muito bem a proposta do enredo.

Clamando por liberdade, o samba foi levado pelos intérpretes Nino do Milênio e Celsinho Mody, que substituem o experiente Wantuir no primeiro ano na escola. A parceria funcionou muito bem.

Segundo Wanderlei Monteiro, comentarista do SRzd, a escola fez um questionamento:

Será mesmo que foi abolida?

“Com quase 130 anos da abolição da escravidão, será mesmo que foi abolida? É o que pergunta o enredo da Paraíso do Tuiuti. Um tema muito atual com as reformas que acontecem em Brasília. O samba de Claudio Russo, Moacyr Luz e parceiros mostra que ainda não estamos livres totalmente. Com uma melodia de encantar e o canto guerreiro da comunidade, um carro de som da melhor qualidade, é grande candidato a prêmios de melhor samba-enredo. Está entre os melhores do ano”.

Fantasias, alegorias e adereços

Desfile Paraíso do Tuiuti 2018. Foto: Leandro Milton/SRzd

Jack Vasconcellos levou à Sapucaí alegorias e fantasias muito fáceis de serem lidas, e que remetem à atual posição dos negros no Brasil hoje. Representações do trabalho informal na 27ª ala, e uma representação de uma carteira de trabalho no último carro, mostram a engenhosidade do carnavalesco em colocar um enredo atual.

O profissional passa pelos diversos momentos mostrando movimentos dos negros no Brasil no século XIX. Desde os movimentos quilombolas, e a realidade dos negros nas diferentes sociedades (egípcia, babilônica, grega, romana e eslava), Jack caminha entre os diferentes papéis que tinham nas sociedades.

Desfile Paraíso do Tuiuti 2018. Foto: Leandro Milton/SRzd

O abre-alas da Tuiuti mostrou o “Quilombo Tuiuti”, que se inspirou nas fortificações de tribos africanas, se mostrando como um lugar de resistência e luta perante o sistema de escravidão. O segundo carro, “Mercado da Gente”, passou pela antiga forma de comercialização dos negros escravizados, vendidos como mercadorias no Norte e Leste da África.

Na vinda para o Brasil, diversos negros morreram em situações sub-humanas. Mostrando a silhueta de um navio negreiro, o terceiro carro da agremiação mostrou o esquema prisional a que eram submetidos.

Desfile Paraíso do Tuiuti 2018. Foto: Leandro Milton/SRzd

No final do desfiles, a realidade atual: o quarto carro mostrou o “Ouro Negro”, que representou a formação social, cultural e religiosa do negro na sociedade brasileira. Um grande tripé mostrando o documento de promulgação da Lei Áurea serviu como cereja do bolo.

Harmonia e evolução

Durante todo o desfile, a harmonia funcionou. Se não bastasse apenas o trabalho dos diretores, diversos profissionais foram escalados para controlar o andamento do desfile para que tivesse maior eficácia. Desfilando dentro dos 75 minutos permitidos, a escola não precisou correr, nem teve grandes problemas em sua evolução.

Veja também:

– Vídeo: Patrick Carvalho desabafa e diz que, após 8 anos, chegou o ‘trabalho da sua vida’

– Presidente diz que luta para que a Tuiuti seja vista como ‘escola do Grupo Especial’

Veja fotos do desfile

Ficha técnica da escola

Fundação: 05/04/1952
Cores: Amarelo ouro e azul pavão
Presidente de Honra: Renato Thor
Presidente: Jorge Honorato
Enredo 2018: “Meu Deus, meu Deus, está extinta a escravidão?”
Diretor de Carnaval: Leandro Azevedo
Carnavalesco: Jack Vasconcelos
Mestre de Bateria: Ricardinho
Rainha de Bateria: Carol Marins
Mestre-Sala e Porta-Bandeira: Marlon Flores e Danielle Nascimento
Comissão de Frente: Patrick Carvalho

Samba-enredo

Irmão de olho claro ou da Guiné
Qual será o valor? Pobre artigo de mercado
Senhor eu não tenho a sua fé, e nem tenho a sua cor
Tenho sangue avermelhado
O mesmo que escorre da ferida
Mostra que a vida se lamenta por nós dois
Mas falta em seu peito um coração
Ao me dar escravidão e um prato de feijão com arroz

Eu fui mandinga, cambinda, haussá
Fui um rei egbá preso na corrente
Sofri nos braços de um capataz
Morri nos canaviais onde se planta gente

Ê calunga! Ê ê calunga!
Preto Velho me contou, Preto Velho me contou
Onde mora a sengora liberdade
Não tem ferro, nem feitor

Amparo do rosário ao negro Benedito
Um grito feito pele de tambor
Deu no noticiário, com lágrimas escrito
Um rito, uma luta, um homem de cor

E assim, quando a lei foi assinada
Uma lua atordoada assistiu fogos no céu
Áurea feito o ouro da bandeira
Fui rezar na cachoeira contra bondade cruel

Meu Deus! Meu Deus!
Se eu chorar não leve a mal
Pela luz do candeeiro
Liberte o cativeiro social

Não sou escravo de nenhum senhor
Meu Paraíso é meu bastião
Meu Tuiuti o quilombo da favela
É sentinela da libertação

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