O Caso Katia Suzuki (ou O Redesenho Moral do Samba – Parte 2)
Em minha última coluna, falei sobre as trocas de valores e o redesenho da moral nas escolas de samba. Tentei explanar, num quadro genérico, as influências do fator capital e como o ímpeto de profissionalização nas “gestões” tem causado severas “indigestões” morais, subordinando as pessoas a valores que nunca foram autênticos nem valiosos para os amantes do samba.
De certa forma, isso tende a se agravar. Ou pelo menos se multiplicar de forma muito recorrente. Com a invasão ilimitada do dinheiro no mundo do samba, cada vez mais justificada como “necessidade para prover a arrecadação da escola”, as barreiras humanas serão demolidas uma a uma. Os que se dão bem apoiam o movimento, por razões obviamente umbilicais: estão defendendo seus interesses. Continuam sua pose de “humildade” e divulgam nas redes sociais sua imagem de “sucesso”. Esses “venceram” no “mundo profissional” do samba. O público e os amiguinhos acreditam: “curtem”, “seguem”, fazem elogios ao que veem, mas desconhecem os bastidores e como as coisas acontecem para sustentar esse “sucesso”. Arrancam-se as raízes, subvertem-se os modelos originais. Pessoas que têm vínculo e resíduo em determinados trabalhos são trocadas por outras, numa lógica surreal de “profissionalismo” ou “melhoria” que ignora tradições locais, fatores humanos ou vínculos afetivos.
Hoje temos um recorte em particular para analisar. Lamentavelmente refiro-me ao desligamento da extraordinária diretora de passistas Katia Suzuki, lá na série C onde “reina” a Caprichosos de Pilares. Quem diria! Uma escola importante, vultosa, de rara contribuição para o carnaval carioca e para a cultura brasileira. Digníssima de nosso respeito e reconhecimento. Que, nos dois últimos anos, prometeu tanto “profissionalismo” e “gestão”, mas acabou despencando em dois rebaixamentos seguidos, após anunciar um trágico enredo sobre o jogador gringo Petkovic, enredo que teve neste colunista uma das poucas vozes a desancar críticas contundentes. A maioria, como sempre, preferia afagar daqui e dali um desastroso enredo que, além de mal costurado como proposta sinóptica, acabou levando a escola a um vexame histórico de desfilar quase sem fantasias e sem carros, visto que o tal dinheiro que entraria como patrocínio não apareceu no trabalho realizado.
Depois do feito, a escola ficou fechada, abandonada, sem se saber o destino que teria adiante. E voltou a ativa para ser novamente rebaixada. Agora, como se nada do que aconteceu tivesse valido ao menos como lição, a escola desarraiga uma notória representante de sua melhor arte. Sim, porque, naquele desfile dos horrores de uma escola sem nada na Sapucaí, a ala de passistas comandada por Katia Suzuki entrou com lágrimas e um samba no pé dignos de quem sabe defender com amor e verdade um pavilhão, uma bandeira! Emocionou a avenida! Quem viu não esquece.
Mas a “Nova Caprichosos” esqueceu. Que saudades da “velha”…
A saída de Katia Suzuki da Caprichosos de Pilares, seis anos após um trabalho de seu nível, é uma perda pesarosa. Isso não apenas pelo fato de Katia ter talento e longa tarimba em um ofício cheio de neófitos com pose de popstars. Katia é uma mulher que exala CARÁTER. Talento pode sobrar por aí, mas essa disposição para ensinar o que aprendeu na grandeza de mestres como Ciro do Agogô, referência real (não apenas de boca), Katia tem como diferencial. O que leva uma escola em situação tão delicada a abrir mão de uma referência como Katia Suzuki?
Para muitos que não sabem, já que “ala de passistas” é um território ignorado pela grande mídia no samba, trata-se de um grupo (mínimo) de 50 pessoas jovens, a maioria estudantes com pouca ou quase nenhuma remuneração, que gastam muito dinheiro fazendo várias roupas, comprando sapatos, sacrificando de seu bolso o que diretores e suas escolas exigem em suas apresentações. São raras as escolas que dão roupas para os vários ensaios: a maioria absoluta só paga a fantasia de desfile (que normalmente é um caxangá pesando 20 toneladas criada pelo “projeto” do carnavalesco). Essas pessoas se sacrificam e se doam pelo ofício motivadas por lideranças, que cativam e fortalecem a presença deles, incentivando o sonho de serem passistas. Ou seja: em cada escola, há vínculos afetivos e pessoais entre líderes e liderados. Quando se arranca uma pessoa da liderança, essa estrutura é naturalmente abalada. Pior ainda se os entrantes não respeitarem as tradições já existentes ou violarem práticas e condutas que fundamentam um grupo dentro de um trabalho já consolidado. Vira um genocídio cultural, antropologicamrnte falando. É mais ou menos o nível de selvageria de um colonizador invadindo uma terra estranha e escravizando colonos, ou uma facção invadindo uma favela para aterrorizar moradores. Não se espantem com a comparação se ela não lhes parede fazer sentido: na pele de quem sofre, é igual! A questão é que essa dominação é feita de várias formas sutis, e pouco aparece pra quem está de fora. Pior ainda quando os próprios integrantes do segmento promovem essa caçada cruel e devastadora, em busca de um privilégio particular em detrimento da própria cultura que representam. E temos visto essa lógica canibal, travestida de falsa humildade, também.
Que fique sumariamente claro que a análise sobre a saída de Katia da Caprichosos de forma alguma fomenta qualquer ataque ou crítica direta ao novo diretor da ala, Jhonny Pereira. Um grande passista da Imperatriz Leopoldinense, rapaz educado e que não se mistura com as exceções ruins do carnaval. Jhonny é sério, dedicado, respeitoso. Tem potencial para fazer seu bom trabalho, e não merece ser criticado por ter assumido um compromisso que muitos outros, às vezes até renomados, refutariam. O que falo, e destaco como raciocínio subsequente a tudo o que venho falando desde a última coluna, é que esse “redesenho da moral no samba” desconsidera valores humanos, pessoais.
Inventaram que a escola de samba é uma empresa. E todo mundo sabe que o mundo corporativo ignora lágrimas, históricos, pessoas, emoções.
Que fique registrada a grandeza de Katia Suzuki. Mas que não seja tão somente pela virtuosa passista e pela grande diretora que é. Falemos de seu CARÁTER. Porque é de caráter e de gente honrada como Katia Suzuki que o mestre Ciro falava…isso é muito mais raro do que os “talentos” que qualquer oficina por aí finge que ensina e qualquer meia dúzia finge que aprende, só porque virou matéria de capa no SRzd ou em outros “www” que sobram na internet…
NOTA: A redação do site SRzd.com foi procurada pela atual direção do GRES Caprichosos de Pilares contestando alguns pontos da coluna aqui publicada. Como convém a um site que não pretende polemizar, apenas informar e propor reflexão sobre o conteúdo que publica, foi dada a devida atenção, com o devido respeito, procurando esclarecer os pontos referidos.
Esta coluna é a segunda de uma linha de textos analíticos propostos pelo autor, cujo foco é a reflexão sobre um momento crítico em que todas as escolas de samba vêm sendo estruturalmente afetadas por uma lógica comercial. A análise é genérica e sistêmica; o caso citado foi apenas pano de fundo para ilustrar a discussão. De forma alguma tratou-se de injúria ou ofensa direcionada.
Não houve menção de nomes de forma ofensiva; pelo contrário, somente para elogiar os trabalhos dos dois passistas referidos no texto. Além disso, em dado parágrafo, as virtudes da escola de samba e sua relevância cultural foram devidamente citadas, o que reitera o respeito pela agremiação. Foram esclarecidas as razões particulares para a substituição no comando da ala de passistas, e o colunista apenas reitera sua preocupação de que haja uma evasão no grupo com a referida mudança. Mesmo não concordando com a mudança, registra-se o respeito à decisão de quem está no comando da escola.
Não se atribuiu a esta diretoria os problemas da anterior, nem à anterior as críticas sobre esta: os fatos citados não distinguiram gestões ou gestores, tão somente evidenciando situações factuais como os dois rebaixamentos e os problemas que, muitas vezes, gestões e diretorias não conseguem evitar, ja que há um sistema pressionando as escolas a uma rota de colisão. Não se pretende demonizar pessoas ou equipes: estamos refletindo sobre valores ideológicos no carnaval.
A atual diretoria lembrou-nos de sua proposição de ser justamente a “Velha Caprichosos” que o colunista diz sentir saudade. Enquanto pesquisador, comentarista e difusor das escolas de samba, o colunista agradece e dispõe-se a acreditar na promessa, considerando relevante essa interação, para que possamos informar com respeito, liberdade e isenção, o universo do samba a nossos milhões de leitores, admiradores do maior espetáculo da Terra.
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