Artigo: A conquista da democracia contraditória

Em 12 de maio de 2016, o vice-presidente Michel Temer (PMDB) assumiu as funções presidenciais interinamente, após o Senado autorizar abertura do processo de impeachment contra a presidenta reeleita Dilma Rousseff (PT).

Trezentos e setenta dias depois, veio à tona um áudio gravado pelo empresário Joesley Batista, no qual Temer mencionou negociações com réus da Operação Lava Jato – um deles, o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha (PMDB). Outro áudio atingiu o ex-candidato presidencial Aécio Neves (PSDB).

Em questão de horas, a coalizão improvisada sobre os escombros da aliança eleita em 2014 se desfez.

Na curta duração do mais recente impeachment presidencial, não faltaram sugestões de como remediar os males da Nova República.

A realização de eleições diretas para a Presidência se tornou grande bandeira da oposição em 2017.

As denúncias contra Temer não eram novas. Tampouco são os clamores pelo retorno às urnas, já.

Como integrante da chapa vitoriosa, Temer recebeu 54 milhões e meio de votos no segundo turno de 26 de Outubro de 2014. A chapa derrotada, com Aécio à frente, recebeu 51 milhões de votos. Mais da metade da população brasileira optou pelos protagonistas do mais recente capítulo da Lava Jato. Quantos milhões estão revendo seus votos, à luz das revelações dessa semana?

Alguns analistas declararam a ‘morte’ da Nova República, sistema político que sucedeu a ditadura civil-militar de duas décadas. Seus vícios nas urnas seriam sintomas de esgotamento estrutural. A criação de uma nova Constituição seria um bálsamo capaz de retomar a vitalidade democrática.

Em 1985, um partido controlava a Câmara e o Senado e ocupava o Planalto. Tancredo Neves e José Sarney eram egressos de outros partidos (respectivamente, PP e PFL). Se encontraram no PMDB e formaram a chapa vitoriosa no último colégio eleitoral da ditadura. A morte de Tancredo legou a Sarney o primeiro mandato da Nova República. Por decisão da Assembleia Constituinte (sob hegemonia do PMDB), Sarney ganhou um ano extra de mandato. Uma nova Constituição foi criada em 1988. Eleições diretas para a Presidência, entretanto, foram adiadas para 1989.

O PMDB continua a controlar as duas casas do Congresso. Um integrante do partido ocupa o Palácio do Planalto. Esse predomínio reflete o resultado das urnas de 2014, silenciadas durante a ditadura.

Os arcaísmos persistentes de 1985 dificultam a crença em eleições gerais como panaceia para 2017.

Entre semelhanças, poucas novidades. A ascensão do Judiciário ao papel de árbitro fundamental do sistema político veio contra o pano de fundo da desmobilização da sociedade civil. Entre 1984 e 2017, o Brasil vivenciou suas maiores manifestações. Além da eleição indireta e morte de Tancredo, 4 presidentes foram eleitos diretamente, 2 com mandatos abreviados por impeachments. Decisiva nos impeachments, a sociedade civil se acomodou no ritmo da expansão do sistema político entre 1993 e 2015. A inclusão de novos participantes estava condicionada ao crescimento econômico.

A estabilização da economia não foi conquista que a sociedade legitimou nas urnas. A austeridade heterodoxa de Collor produziu três anos de recessão, abreviada pelo primeiro impeachment. Sob Itamar, após um período de transição retomando parte das políticas de Sarney, o Plano Real seria confeccionado sob os auspícios de oposicionistas de Collor derrotados nas urnas em 1989: o PSDB.

A manutenção do tripé macroeconômico do Real foi uma característica fundamental da economia dos governos FHC e Lula, ao longo dos quais houve expressiva expansão da justiça social. A crise internacional de 2008 estancou o ciclo de crescimento econômico com inclusão social. Sob Rousseff, o abandono dos fundamentos do Real foi seguido por uma recessão mais profunda que a de Collor.

Investigado pela Procuradoria-Geral da República, Temer luta pelo que restou do seu governo. A vacância do cargo presidencial levaria à realização de eleições indiretas para presidente e vice, sob os auspícios do presidente da Câmara Federal, conforme previsão constitucional. A Nova República voltaria às suas origens (o colégio eleitoral de 1985), agora pelas mãos de representantes do povo.

Esse retorno traria consigo tintas dramáticas. O atual presidente Rodrigo Maia (DEM) foi eleito para completar o mandato de Cunha, afastado do cargo em 2016. Um parecer do Supremo Tribunal Federal permitiu a Maia concorrer à reeleição em 2017 e ampliar seu mandato por mais 2 anos.

A mesma dinâmica pode se instaurar numa eleição indireta presidencial. Beneficiado pelo desgaste dos grandes partidos e lideranças das últimas décadas, o escolhido pelo Congresso para o mandato-tampão poderia se alavancar para as eleições diretas de 2018, tendo dois anos de antecedência.

Na longa duração da crise, o desgaste da representação política se aprofunda, ao som das delações e no ritmo das decisões judiciais. Sentimos os limites da Nova República e da Constituição de modo agudo. Essa exaustão reforça ânsias por um alívio imediato (o ‘fim’ da corrupção, alguma salvação).

Lutamos por décadas pelo direito de ter direitos, como escolher representantes. A democracia é um edifício de muitas mãos, corações, mentes. Um amálgama contraditório, com a força das diferenças.

O método democrático pressupõe honrar conquistas e sacrifícios de outras gerações. Com eles, podemos atravessar crises e criar um futuro para além dos desafios e estrangulamentos presentes.

Respeitar a Constituição em meio à contradição é um exercício democrático fundamental.

 

*professor de Relações Internacionais e diretor de Assuntos Internacionais da Universidade Federal do Tocantins (UFT)

 

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